TRATADO DO CANTE:
.......Congresso
do Cante Alentejano
Beja, 8 e 9 de
Novembro de 1997
PAINEL B SITUAÇÃO ACTUAL DO CANTE
O tema da minha comunicação é: recolha e recuperação do canto popular
religioso do Baixo Alentejo.
Foi em finais de 1978 que a Comissão
Diocesana de Liturgia e Música Sacra de Beja editou uma cassete com as
primeiras recolhas de música popular religiosa do Baixo Alentejo interpretada
pelo Coro do Carmo de Beja. Desse trabalho se dava conta numa breve notícia
publicada em 12 de Dezembro desse ano de 1978 no “Jornal Notícias” de Beja.
Essa notícia não passou despercebida a um responsável da RTP. O assunto
motivou, uns tempos depois, a vir a Beja e fazer uma peça onde imagens das
planícies Alentejanas e o perfil majestoso da nossa cidade de Beja com a citada
cassete como fundo sonoro eu próprio e o Padre António Aparício intervínhamos explicando
o trabalho de recolha e recuperação do canto popular religioso do Baixo
Alentejo. Com espanto meu e de muita gente essa peça de cerca de seis minutos,
foi passada integralmente no telejornal que era então às 21 horas da RTP 1 do
dia 11 de Agosto de 1979. No dia seguinte, um crítico televisivo de um jornal
lisboeta referia-se ao assunto mais ou menos nestes termos, como perdi o
recorte de que tenho muita pena, tento reconstituir o mais fielmente possível
algumas palavras que vinham lá que na síntese diziam o seguinte: Na Diocese de
Beja estão a adaptar o cante alentejano às cerimónias da Igreja, aí está a
Igreja oportunista como sempre. Por este andar não tarda que dentro de pouco
tempo possamos ver o padre do Algarve a levantar a hóstia ao som do corridinho
e ao som do vira do Minho (estas palavras são textuais, recordo-me muito bem
delas). Creio que o crítico em questão percebeu muito mal as nossas palavras e
intenções, não usamos o termo adaptar mas sim recolher e recuperar era disso e
só disso que se tratava, ou seja salvar do esquecimento e dar de novo vida
àquilo que estava perdido, ou quase perdido, no campo da vasta e rica tradição
musical religiosa alentejana tratava-se de recuperar e dar de novo vida a uma
parte muito concreta do repertório da música do Baixo Alentejo que pelo lugar e
as circunstâncias em que se cantava, pelo seu texto, pela estrutura e natureza
da sua linha melódica e rítmica, enfim por todo um conjunto de características
'impares facilmente podemos identificar como música popular religiosa, que
aliás já foi referida aqui na comunicação precedente. Esse crítico não entendeu
que embora os nossos objectivos fossem de ordem pastoral procurando valorizar a
liturgia, estávamos também a prestar um grande serviço ˆ cultura. Hoje passados
já 20 anos sobre o início dessa experiência não tenho dúvidas em afirmar que
estávamos no bom caminho e que a referida crítica, aliás isolada, acabou por
nos estimular ainda mais a percorrer com entusiasmo e com serenidade esse
caminho. Como todos sabem há uma grande variedade de cânticos populares de
índole religiosa que juntamente com os cantares profanos constitui certamente
uma das maiores riquezas do património cultural do Baixo Alentejo, basta
consultar as recolhas de alguns eminentes etnomusicólogos para saber que assim
é, nos trabalhos de Lopes-Graça, Giacometti, Padre Marvão, Ranita da Nazaré,
José Alberto Sardinha, para só falar de alguns dos mais recentes, encontramos
bastantes cânticos religiosos recolhidos no Baixo Alentejo. As suas recolhas
obedeceram principalmente a objectivos de ordem cultural, estudar, preservar,
não deixar perder, organizar repertório, registar tudo antes que desaparecessem
os informadores. A nós, além destes objectivos tão importantes que assumimos
plenamente, moveu-nos ainda um outro de ordem pastoral como disse atrás,
recuperar, reatar os elos de uma cadeia partida pondo de novo na boca e no
coração dos crentes as velhas e majestosas melodias que o povo alentejano
outrora criou e cantou nas várias manifestações religiosas e que com os tempos
foram caindo no esquecimento. A tal nos encorajou a palavra da Igreja que nos
documentos do Concílio Vaticano II consagrou um lugar importante ao canto
popular religioso. Diz a instrução Música Sacra que é um documento para pôr em
prática um outro documento conciliar, a que referirei mais tarde. Com o nome de
música sacra designam-se aqui o canto gregoriano, a polifonia sagrada antiga e
moderna, a música sagrada para órgão e outros instrumentos admitidos e o canto
popular sagrado ou litúrgico e religioso, por seu lado a constituição sobre a
sagrada liturgia que foi o primeiro documento que o Concílio Vaticano produziu
e foi dos que tiveram mais impacto, pois foi ele que definiu que as missas
passariam a ser na língua dos países e não em latim, esse documento diz nº.
118, promova-se muito o canto popular religioso, para que os fiéis possam
cantar tanto nos exercícios de piedade como nos próprios actos litúrgicos e o
nº. 119 do mesmo documento diz: em certas regiões, sobretudo nas missões, há
povos com tradição musical própria a qual tem extraordinária importância na sua
vida religiosa e social, estime-se como se deve e dê-se-lhe o lugar que lhe
compete. Estas palavras manifestam bem a atenção, o respeito e o interesse da
Igreja pela expressão cultural dos vários povos e regiões, bem como o seu
desejo de inserção na sua cultura. Ora em Portugal se há alguma região com uma
tradição musical própria, como verdadeiro canto popular religioso, essa região,
o Baixo Alentejo. Isto nos estimulou a meter mãos à obra e voltar a dar à
música que se canta nas manifestações religiosas do Alentejo, ou que se
cantavam, uma identidade muito própria, assim em 1978 a Comissão de Liturgia da
Diocese de Beja começou um trabalho de recolha e recuperação da música popular
religiosa desta região. Ao todo foram visitadas algumas por duas e três vezes
mais de 40 localidades, particularmente aldeias e "montes". Desde os
montes perdidos do concelho de Mértola a meios maiores como Serpa, Ficalho,
Aldeia Nova de São Bento, Pias, Baleizão, Cuba, concelho da Vidigueira, etc.,
nomeadamente algumas povoações aqui do concelho de Beja, nós contactámos muitas
pessoas de idade avançada que nos cantaram o que sabiam, todo o vasto material
recolhido depois de seleccionado e revisto literariamente, começou a ser
trabalhado pelo Coro do Carmo de Beja que o foi testando na Igreja do Carmo e a
pouco e pouco o foi divulgando em celebrações transmitidas quer pela
Radiodifusão Portuguesa, pelo menos nove celebrações a um ritmo de meio em meio
ano, que foram transmitidas, quer pela Televisão, muitíssimas e também pela
publicação de duas cassetes e dois livrinhos, mas estas publicações constituem
apenas uma parte do material disponível. O resto está na gaveta à espera de
tempo para ser tratado. É evidente que tratando-se embora de melodias
rigorosamente tradicionais ligadas às várias manifestações de religiosidade
popular elas são agora reinterpretadas desde logo porque cantadas por um coro
litúrgico para o qual algumas delas foram harmonizadas a quatro vozes mistas
depois porque elas passam do contexto de uma "liturgia paralela"
criada pelo Povo e marcada pelo devocional para a "liturgia oficial",
nomeadamente a missa, finalmente porque são acompanhadas a órgão, um elemento
absolutamente novo na sua interpretação (possivelmente, contestável, o que
admito, por alguns presentes), mas porque não fazê-lo, no fundo respeitando a
matriz genuinamente popular destes cânticos, nós tentamos valorizá-los e com
eles valorizar a liturgia renovada pelo Concílio Vaticano II que como vimos
quis que ela integrasse o canto popular religioso. Há dias o Coro do Carmo de
Beja foi convidado a gravar um CD com música religiosa alentejana, para
organizar o repertório escolhi quatro grandes temas genéricos: A Missa, O
Natal, A Quaresma e os Santos Populares. Hoje queria dizer uma palavrinha sobre
cada um destes temas aos quais acrescentarei ainda qualquer coisa sobre o
cântico das Almas, os cânticos a Nossa Senhora e os cânticos ou preces para
pedir a chuva.
Os cânticos da Missa
Do ponto de vista de fidelidade à
tradição não se pode em rigor falar de cânticos alentejanos para a Missa, esta
celebrou-se em latim até à reforma do Concílio Vaticano II, em princípios dos
anos 60 sendo raríssimos os cânticos de índole popular que nela entravam. Nas
nossas recolhas não encontrámos um único cântico sobre os textos da Missa, nem
tão pouco nos espécimens inventariados detectámos os versículos de um salmo ou
alguma citação bíblica, por outro lado o conceito de participação da assembleia
é uma aquisição do mesmo Concílio, portanto algo de muito recente, não há assim
uma tradição de cânticos populares alentejanos para a Missa pelo que
praticamente nenhum dos cânticos que nós costumamos cantar durante a Missa
nasceu no contexto da celebração eucarística. Apesar disso, pensámos que era
legítimo aplicar aos vários momentos da Missa alguns cânticos
"emprestados" de outras situações da religiosidade popular, com as
devidas adaptações textuais nalguns casos, aqui sim, estamos a falar de
adaptação mas não do profano para o religioso. Como é sabido os textos da
maioria destes cânticos nascidos num contexto de devoção de carácter popular
raramente se adaptam cabalmente às exigências de uma liturgia renovada
sobretudo se se destinam à Missa. Sempre que possível e aconselhável
conservámos o texto original, porém no caso da Missa adaptámos um texto novo
respeitando rigorosamente a métrica e o ambiente do cântico original. O
aleluia, um cântico que recolhemos em Peroguarda, não sei bem se se cantava na
Missa, pelo menos sabemos que se cantava na altura da Páscoa; o cântico de
ofertório - somos da terra do pão, o cântico da comunhão - O bom pastor e
outros. Para cântico de entrada aproveitamos "Cristo profeta", incluído
no Cancioneiro Alentejano do Padre António Marvão, acrescentando-lhe a segunda
e a terceira estrofes, enfim para cântico final um momento mais
incaracterístico da Missa, não tivemos dificuldade em incluir um dos cânticos
do repertório em honra de Nossa Senhora mas que poderia perfeitamente ter sido
outro.
Os cânticos do Natal
O ciclo do Natal com os seus cânticos:
Deus Menino, das Janeiras e dos Reis é certamente o mais rico de toda a
tradição da música popular religiosa do Alentejo são muitas as localidades onde
encontrámos esse tríptico completo, verificando também que são esses os
cânticos que mais resistiram à erosão do tempo. Esta constatação era já
assinalada nos finais do século XIX. Cito: "O que ainda subsiste apesar da
sua origem secular, tão secular como a do presépio é o costume dos descantes ao
Deus Menino, às Janeiras e aos Reis" Nunes, Dias - Tradição de Serpa,
Janeiro de 1899. Deste vastíssimo repertório encontramos cânticos ao Menino em:
São Matias, Cabeça Gorda, Beringel, Trigaches, Trindade, Vidigueira, Cuba, Vila
Alva, Peroguarda, Baleizão, Pias, Aldeia Nova de S‹o Bento, Serpa, Brinches, A.
do Pinto, Vila Verde de Ficalho, Safara, Santo Aleixo da Restauração,
Aljustrel, São Marcos da Ataboeira, etc. O de Serpa é uma imponente melodia, um
verdadeiro monumento à música, o de Pias muito mais singelo mas ornado com uma
harmonização na parte do refrão é também muito interessante, o de São marcos da
Ataboeira, que fica perto de Castro Verde tem uma original estrutura em que a
melodia de sete compassos se esgota em cada verso da quadra (para cantar uma
quadra preciso cantar quatro vezes a
melodia). Encontrámos cânticos dos
Reis em: Marmelar, Neves, Trigaches, Baleizão, Peroguarda,
Aldeia Nova de São Bento, Pias, Vila Verde de Ficalho,
Brinches, Almodôvar, Monte dos Penedos, São Miguel do Pinheiro e Castro Verde,
mas creio que há mais. Quanto às Janeiras encontrá-mo-las em: Cuba, Baleizão,
A. do Pinto, Vila Verde de Ficalho, Aldeia Nova de São Bento, Cercal do
Alentejo, Vila Nova de Milfontes, Zambujeira, Espírito Santo, Monte dos
Penedos, etc. De assinalar que os "Reis" de Pias têm um texto
completamente diferente de todos os outros do Alentejo e que o de Peroguarda,
constitui uma das majestosas melodias natalícias que fizeram Giacometti
apaixonar-se por aquela aldeia alentejana a ponto de pedir para nela ser
sepultado.
Os cânticos da Quaresma
Segundo testemunhos recolhidos, o
tempo sagrado da Quaresma era escrupulosamente respeitado pelo Povo alentejano,
durante ele mesmo nos campos, não se cantavam as modas profanas, talvez haja
aqui pessoas que ainda se lembrem disso, ainda há aí uns quinze dias uma pessoa
de uns setenta e tal anos me confirmou isto, mas tão somente se cantavam os
cânticos sacros à volta do tema da Paixão de Jesus Cristo, este é de facto um
dos temas mais caros à devoção e piedade popular que foi muito cantado no
Alentejo como de resto noutras zonas do País. Desta secção eu lembro:
"Além vai Jesus - Além vai Jesus/ Que lhe queres tu/ Quero ir com ele/ Que
ele leva a Cruz/ Seus braços abertos/ Seus pés encravados/ Derramando o seu
sangue/ Pelos nossos pecados", que ouvimos cantar em Vila Nova de São
Bento e Vila Verde de Ficalho e cujo texto completo com 20 quadras viemos mais
tarde a encontrar num dos números da já citada Tradição de Serpa, publicada em
1899. "Pelas vossas Chagas/ Pela vossa Cruz/ Livrai o Vosso Povo/ Meu doce
Jesus/" etc., recolhido em Pedrógão do Alentejo; "Perdão, ó meu
Deus", recolhido na região de Mértola, com texto tradicional e uma melodia
muito linear à qual acrescentámos uma harmonização para coro misto.
"Senhora das Dores" de Pias que sempre fez parte da tradição viva
daquela localidade por altura da procissão da festa de Nossa Senhora das Dores,
quem lá for sabe que assim e há
aqui gente de lá, sabe que
assim. Os cânticos da Paixão: “Benvindo e Louvado Seja" que eu recolhi em
Santana de Cambas e em Pedrógão do Alentejo. O cântico dos "Martírios do
Senhor" com um texto que vai se referindo sempre aos vários sofrimentos de
Cristo, desde a cabeça até aos pés, os joelhos às costas que recolhi em
Beringel.
Cânticos dos Santos Populares
O cântico a Santo António é
uma melodia leve e graciosa que nos foi cantada em Serpa por duas fontes
diferentes mas coincidentes, tem a particularidade de terminar na subtónica;
O cântico a São João é conhecidíssimo em Pias pois está ligado à tradição dos
Jordões (não tenho tempo de explicar isto) por altura das festas de São João,
também encontrámos um em Santana de Cambas e outro em Baleizão; finalmente o
cântico a São Pedro: canta-se em Vila Alva (perto de Cuba) à roda do altar quer
na véspera de Santo António, quer na véspera de São Pedro com as devidas
adaptações, o mesmo cântico serve para as duas situações.
Cântico das Almas
É famoso sobretudo na região de
Mértola, nomeadamente no Monte do Roncão e começa assim: "ricordai ou
ricordai/ - almas da outra vida/ "... (tenho aqui o texto todo, mas não
vou maçá-los com a sua leitura, é muito interessante) encontrámos pelo menos
umas dez quadras, mas eu conheço ainda outra versão ainda com mais quadras;
encontrámos também outro em Vila Verde de Ficalho, outro na Cabeça Gorda e em
Pedrógão a chamada Encomendação das Almas.
Cânticos a Nossa Senhora
Além daqueles mais conhecidos,
nomeadamente "Ó Virgem Maria", já muito divulgado; "Nossa
Senhora do Carmo", da autoria do Sr. José Coelho que já morreu, que foi
maestro duma das bandas de Moura e "Nossa Senhora das Dores", a que
já me referi: de Pias; além destes encontrei: "Ó Virgem da Esperança"
em Cuba; depois no Monte do Roncão "Estando a Virgem"; depois um
outro no Monte dos Penedos, no Monte Diogo Martins, estes montes são no
concelho de Mértola, "Excelências da missa", "Nossa Senhora a
Virgem", "Virgem Mãe Santíssima", "Senhora do Carmo";
no Monte Simões, no Espírito Santo, "Salvé Rainha", "estando
Nossa Senhora"; em Algodor também um cântico a Nossa Senhora; em Pedrógão
as "Excelências da Virgem" e "Senhora da Conceição"; na
Cabeça Gorda as treze "Excelências da Virgem".
Cânticos para pedir a Chuva
Neste momento não faz sentido mas o
Alentejo é muito seco e há momentos dramáticos em que as pessoas se voltam para
o alto para pedir a chuva. Cânticos vários que encontrei, um deles no Espirito
Santo; um em Entradas, belíssimo, o Coro do Carmo recuperou-o e já o temos
cantado, até já o cantámos na televisão. Devo dizer que sempre choveu quando o
cantámos; um em Serpa e a Tradição de Serpa fala deste cântico e diz assim:
antes da procissão de São Francisco até à Senhora de Guadalupe ia com o capuz
fora da cabeça, à vinda já trazia o capuz na cabeça para não apanhar chuva e os
homens levavam já o guarda chuva, porque ˆ vinda sabiam que o tinham de usar;
um em São Matias.
Com isto termino pedindo desculpa se
passei o tempo...
Padre
António Cartageno
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