QUE MODAS? ... QUE MODOS? - PAINEL A



DIA 8 DE NOVEMBRO DE 1997 - SÁBADO

09H00 SESSÃO DE ABERTURA
Na abertura dos trabalhos falou o Presidente da Assembleia Geral da Casa do Alentejo, Prof. José Chitas, que se congratulou com o evento.
Apresentou as boas vindas a todos os congressistas.
Pediu um minuto de silêncio em memória das vítimas da tragédia que assolou o Alentejo, nos últimos dias.

O Comissário do Congresso:
Ao longo deste tempo todo convivi com os elementos dos grupos corais, privei com algumas pessoas, onde foram abordados variadíssimos temas, que naturalmente iriam cair, no cante alentejano. Foi de facto um esforço muito grande, mas eu creio que estou compensado por isso e por aquilo que gosto do cante alentejano e também por ser alentejano, embora viva na zona da grande Lisboa, onde a gente às vezes, até nas modas que se cantam nessa zona, não levam aquele timbre, aquela fala, tão específica porque entretanto as coisas já foram moldadas, eu se calhar também sofro por isso.
Mas, a mensagem que este secretariado quer deixar é que neste Congresso, aquilo que se conseguir atingir, tem que ser com esta preocupação: é que os Grupos Corais, nesta altura, não tem nada, aquilo que efectivamente se conseguir aqui é ganho, portanto que façamos um bom Congresso, que as intervenções sejam oportunas, para que daqui a uns anos, possamos estar aqui ou noutro lugar qualquer, a fazer um novo congresso, então já com os objectivos traçados e para que o Cante Alentejano seja o que de bom transpira do Nosso Alentejo.
Ficava-me por aqui, porque já estamos um bocado atrasados e entrávamos já na discussão dos temas propostos, para não perdermos mais tempo. Obrigado pela vossa atenção e pela vossa presença".
DIA 8 DE NOVEMBRO DE 1997 – SÁBADO
09H30 PAINEL A RAÍZES E ESTUDO DO CANTE ALENTEJANO
Artur Mendonça:
Bom dia a todos, o Painel A vai tratar de: raízes e estudo do Cante Alentejano. Como Coordenadores na mesa nós temos: Dr. José Simão Miranda e José Roque, ambos do Secretariado do Congresso. Como oradores nós temos presentes, já na mesa, o Dr. Henriques Pinheiro e vamos ter a Drª. Salwa Castelo-Branco, representante da Universidade Nova de Lisboa. Depois vamos ter comunicações do Dr. Henriques Pinheiro, já presente na Mesa como disse, de Julián del Valle, de José Pereira e da Associação Alma Alentejana. Vamos dar início aos debates e a mesa da minha esquerda para a minha direita, nesta altura tem o Dr. Henriques Pinheiro, a Drª. Salwa Castelo-Branco, o Dr. José Miranda e o Sr. José Roque. Bom trabalho para todos.
José Miranda:
Vou apresentar o primeiro prelector, desta mesa, Dr. Henrique Pinheiro, meu ilustre colega, que eu não tive o prazer de o conhecer até agora, apenas conhecia de nome. Eu também, tal como ele, sou médico e trabalhei no Hospital de Beja, não tive, de facto, o prazer de o conhecer na altura, pois dá-me a ideia que ele já estava aposentado, ou pelo menos não estava ligado ao Hospital. Trata-se de um ilustre médico, chegado a Beja já há 54 anos. Foi médico no Hospital da Misericórdia, antigo Hospital de Beja. Foi Director Distrital do Serviço de tuberculose e doenças respiratórias. Foi também Director do Diário do Alentejo. Dinamizou com a sua esposa a delegação da Proarte de Beja durante 18 anos. Fundou com a sua esposa, também, o Centro Cultural de Beja e dentro dele a Academia de Música do Centro Cultural. Dinamizou, ainda o processo de constituição do Conservatório Regional do Baixo Alentejo, do qual é Presidente do seu Concelho de Administração. Actualmente não exerce clinica. Mas de facto muitos alentejanos o conhecem porque foi extremamente importante na luta contra a grande epidemia de tuberculose no Baixo-Alentejo. Tem a palavra.

Henriques Pinheiro:
Bom... eu não sou alentejano. Vim de muito longe, de Aveiro, uma região totalmente diferente. Estas primeiras palavras que vou pronunciar, são ditas no sentido de me localizar, neste Alentejo e de explicar o grande interesse e o grande entusiasmo que eu tenho pelo canto alentejano, pelo Povo alentejano, pela natureza do Alentejo, geograficamente falando. Sou médico, mas estudei música, executei violino durante sete anos. Quando fui para a faculdade, deixei o violino. Erros que se cometem ... Enfim possuo certa formação musical que me leva a entender o canto alentejano, melhor do que, talvez, outras pessoas que não tenham tido contacto com a música assim como eu tive. Evidentemente que ao lado da Sr.ª. Drª. Salwa Castelo-Branco, que é uma pessoa que está perfeitamente dentro do problema que vamos aqui abordar e que o sabe tratar de forma superior, sinto-me um pouco diminuído, em face da companhia com quem estou. No entanto, e modéstia à parte vou realmente desenvolver o tema que me propus apresentar hoje aqui, o qual poderá ser motivo para comentários críticos por parte da assistência”.
ACERCA DO ENCANTO DA MÚSICA POPULAR ALENTEJANA E DA BELEZA DA SUA POESIA. DILEMAS SOBRE A ORIGEM DO CANTO ALENTEJANO
A razão por que aqui me encontro, para falar do canto desta região, em poucas palavras se pode resumir. Desde que aqui cheguei, o canto revelou-se-me a expressão de uma arte musical que, para além de não ter qualquer semelhança, com o canto popular de outras regiões, logo se me afigurou ser de bem melhor qualidade que de outras cantigas populares do nosso País. A verticalidade do Povo revelou-se-me sem hipócritas e interesseiras mesuras face à tradicional postura de outras gentes perante certos poderes da hierarquia social. A Planície que se me revelou, a compleição geográfica mais favorável, a afirmação da verticalidade do ser que o Alentejano é, pois lhe basta erguer-se para sobre si próprio dominar léguas a perder de vista, esta Planície seduziu-me pela serenidade dos dilatados horizontes tão propícios à serena meditação, à interiorização da sensação de paz que dela parece brotar. Originário do Norte do País, duma região bem diferente deste Alentejo, bastante impressionado fiquei por ocasião das minhas primeiras férias que por aqui passei, estávamos numa época do Natal, num dos últimos dias da década de trinta, quando um canto de bela e estranha harmonia me acordou, de madrugada e depois se foi afastando, lentamente, rua além para voltar a aproximar-se, rua aquém num canto de solene sonoridade, compassado, majestoso. Era um canto de grande beleza, que muito surpreendeu a minha sensibilidade. E, a madrugada, as estrelas e a aldeia adormecida (Baleizão) onde os meus pais estavam, - eram professores do ensino primário, - ajudavam a enriquecer a tão extraordinária harmonia àquelas horas e daquele modo cantada. Não consegui na altura entender a poesia que o grupo cantava. Só mais tarde me aperceberia da beleza poética que ilustra as canções populares deste Alentejo e que tanto merecimento lhes acrescenta tornando-as ímpares, sem discussão.
Nas férias que se foram seguindo fui assimilando, cada vez de forma mais sentida e mais aprofundada toda a beleza deste canto e da sua poesia. Nascido em Aveiro e licenciado em Coimbra, aqui cheguei onde as terras eram outras e outras eram as águas, outros os ares, outras as gentes, as diferenças culturais as dissemelhanças paisagísticas, a dureza do clima, as condições de vida dos servos da gleba que então conheci, constituíram circunstâncias chocantes de estímulo para o enriquecimento do meu saber e do meu entendimento. Outros costumes, outra cultura, outra vivência humana, sem dúvida. Mas o canto, as gentes deste Alentejo e esta paisagem, longe de para mim constituírem motivos de tédio, pelo contrário, definitivamente me cativaram. Canto de solene harmonia, povo isento de postura louvaminheira, isento de espírito subserviente, de facto para além de apreciar o canto popular, bastante aprendi neste Alentejo com as suas gentes, sem dúvida. Compreendi e avaliei o seu sofrimento face à injustiça dos poderes, apercebi-me que o alentejano em poucas palavras, de acordo com o seu ritmo musical, sabe expressar mundos de ideias com o mais profundo significado. Tive a sensação de que as suas cantigas penetram na alma dos homens e que parecem até penetrar na alma dos bichos e das plantas, como Antunes da Silva no seu acrisolado sentir pelo seu Alentejo assim se exprimiu sobre o cantar do seu Povo. Comecei, então, também a sentir e a viver a minha paixão pelo Alentejo.
Vários têm sido os estudiosos do canto alentejano, mas a sua maior parte têm sobretudo feito a recolha e a gravação deste património cultural, por forma escrita e fonográfica num trabalho de campo à margem de princípios, métodos e conclusões do âmbito da comunidade científica. De todos os trabalhos publicados um se destaca pelo rigor da sua análise, com transcrições musicais adequadas, para bem se compreender o canto alentejano, com a análise completa de cada texto contemplando as tonalidades, a estrutura melódica, a velocidade metronómica, os âmbitos, a organização rítmica, as direcções, as formas finais, a forma, o carácter silábico, melismático mais ou menos ornamentado. A pesquisa de João Ranita da Nazaré, sem dúvida de grande valor, como investigação no campo do canto popular do Baixo Alentejo. Os momentos vocais do Baixo Alentejo, deste conceituado etnomusicólogo constituem um trabalho exaustivo de verdadeira pesquisa científica sobre 125 canções do Baixo Alentejo, sem dúvida útil para quem deseje aprofundar os seus conhecimentos sobre o canto popular. Foi publicado em Portugal em 1986 e constituiu a sua tese de doutoramento na Sorbonne em Paris. Não sei se o seu trabalho foi incentivo para, como seria desejável, alguém mais continuar por idêntico caminho na investigação do canto popular.
É claro, e sobre isso não restam dúvidas a ninguém, que a recolha dos cantos populares portugueses feita por Michel Giacometti foi muito mais volumosa pois incidiu sobre mais de 600 freguesias do País e reuniu mais de 4.000 registos de música gravada. Porém não a analisou sobre o ponto de vista científico. Giacometti não sabia música, tinha porém a clara intuição do que os cantos do povo podem representar como afirmação do seu valor cultural. O cantar do Povo desta região era o que, de entre todos, mais apreciava e o seu desejo expresso de ser sepultado no coração do Alentejo, em Peroguarda e de ser acompanhado pelo canto de uma moda popular religiosa, entoada pelo coro da aldeia tem o muito claro significado de acentuada paixão pelo canto popular deste Alentejo.

No estudo do nosso canto popular, Fernando Lopes-Graça, teve sem dúvida um papel importante. Lopes-Graça foi o grande mestre e compositor que melhor soube tirar partido artístico das canções populares do nosso País e as tratou em extensão e profundidade, aproveitando toda a riqueza que o cantar do Povo lhe sugeria. Pegou no cantar do Povo e harmonizou-o em textos para orquestra e para conjuntos corais com a expressão, ritmo, características psicológicas e morfológicas que as melodias lhe inspiraram. Depois de ter composto as suas 24 canções populares portuguesas iniciadas em Paris por sugestão da conhecida cantora de então, especializada na interpretação de cantos populares Lucie Devinsk, foi então que Lopes-Graça pensou ter chegado ao seu maior e mais importante resultado que foi o de concluir que a canção popular portuguesa é muito mais rica do que ele próprio supunha e mesmo do que lhe faziam antever os estudos até aí feitos, entre nós. Para Lopes-Graça um dos cantos populares mais belos era o canto alentejano.
Outros investigadores e vários tem havido se debruçaram sobre o nosso canto popular. Mas os investigadores na sua maioria, encontram-se, como se encontravam, ainda na década de 40, numa fase de investigação quase exclusivamente empírica, meramente descritiva. O canto alentejano com todo o seu mérito, mantido ou sujeito a evolução e entre as polémicas de quando é ou não é o mais genuíno será sempre um valor cultural digno de atenção e estudo pelo que toda e qualquer iniciativa com o intuito de aprofundá-lo em todas as suas características: estéticas, etnológicas, etnográficas, é sempre uma iniciativa a apoiar.
Nesta pequena e despretensiosa intervenção apenas abordarei três de entre as várias questões que merecem ser tratadas em relação ao canto popular alentejano, mais sob o ponto de vista da minha capacidade de sentir, de apreender a expressão artística da beleza sonora que o canto alentejano me transmite; mais sob o ponto de vista do saudável lirismo com que a bonita poesia das suas modas me encanta. Sobre estes aspectos brevemente me debruçarei. De onde vem, onde brotou e como evoluiu esta inconfundível polifonia popular portuguesa? Interessantes questões que continuam à espera de respostas adequadas. Que direi eu mais sobre esta apaixonante questão? Às hipóteses até agora avançadas como resposta a tais questões só poderei acrescentar mais hipóteses, apenas mais conjecturas, probabilidades, teorias, o que afinal é bem pouco no sentido de prova de uma ou outra hipótese.
Há no canto alentejano que não é simples, nem ingénuo, como aliás não são simples nem ingénuas as mais variadas canções populares portuguesas, uma belíssima e larga elaboração que lhe dá um equilíbrio harmónico perfeito, uma ampla expressão e grande musicalidade, carregadas de potencial, ora dramático, ora patético, ora simplesmente lírico.
O canto alentejano na sua expressão polifónica, na sua dimensão e estrutura harmónica assim se caracteriza, como sabemos: é o ponto que começa a moda, isolado, cantando apenas uma parte limitada da poesia; de seguida inicia o alto o seu canto, isolado, apenas alguns segundos, mais ou menos segundos, consoante a cantiga; após o que, os dois, se juntam ao coro constituindo-se assim o belo conjunto popular, que bem conhecemos, de perfil inequívoco com as suas inflecções, modelações ou melismas, com o seu sotaque, os seus ritmos, moderado ou lento que tão bem caracterizam a cadência do cantar alentejano, ímpar, solene, profundo, sempre interpretado na digna postura de quem medita gravemente na mensagem musical e poética que transmite. Breves notas são estas as que todos poderemos aprender nos trabalhos dos que têm estudado o canto alentejano.
Não tendo eu a pretensão de entrar em pormenores técnicos e científicos sobre o cantar alentejano, pormenores habitualmente abordados pelos musicólogos e maior ou menor gabarito, passo de imediato a alguns comentários sobre a poesia que tanto valor acrescenta ao nosso canto.
O cantar alentejano é ainda enriquecido por uma expressão poética de profundo sentido lírico em que os hinos à natureza são constantes. Está cheio de bonitos versos, que falam do lírio roxo, da rosa e da roseira de quem o poeta já fora o seu melhor botão, da linda flor que é a da murta, das oliveiras que ao longe parecem rendas, do despertar da bela aurora, do sol que alegra o dia, da água que vai correndo mansamente, vagarosamente, a quem o poeta pede para passar pelo seu jardim para lá lhe regar uma rosa, do passarinho que pousa no raminho, da pombinha que pousa no seu pombal, do luar da meia noite que tem lá segredos seus, dos altos silêncios da noite que as vozes do poeta vão rompendo, já que de dia não pode lograr o bem que pretende, de como para cantar à sua amada o poeta aprendeu a cantar lavrando a terra molhada, dos cabelos louros da sua amada pelas costas espalhados que parecem fios de ouro com fios de prata atados, da cadeirinha nova feita da raiz do cravo, da folha da rosa e do ramo de alecrim, das papoulas em flor no meio dos trigais, da cantarinha que chega à fonte com o barro mais corado com medo que a água conte os beijos que lhe tem dado.
Se por outro lado atentarmos na poesia dos cantos alentejanos, assunto abordado pelo Padre Cartageno em 1982, dita em versos de piedade bem sentida, estamos em presença de uma interessante conjugação de sentimentos panteístas e cristãos em que o louvor e a adoração se reparte entre a universalidade dos seres dignos de admiração e o credo no Salvador, em que as raízes pagãs de uma cultura coabitam com o sentimento cristão.
Muito se tem discorrido e se discute ainda sobre as origens do canto popular alentejano. Segundo uns as janeiras terão origem nas saturnais pagãs do calendário romano; segundo outros a sua origem estará nas festas comemorativas do início do ano agrícola dedicadas à deusa Strena que presidia às estreias, e finalmente veio o cristianismo e lhes deu novo significado e realçou nelas o dia do ano novo, a noite primeira em que Deus passou tormento: a circuncisão, o tormento que começara pelo menos mil e quinhentos anos antes, há três mil e quinhentos anos, em cerimónias religiosas que levaram à circuncisão de milhões de crianças: egípcias, judias, árabes (ismaelitas), moabitas, amonitas e continua a ter lugar actualmente entre os judeus e fora do judaísmo em rituais entre os negros de África.
Curiosa é sem dúvida a hipótese da influência pagano-cristã na génese das "janeiras" que se cantam na noite de São Silvestre e que encontro avançada numa comunicação de há anos, bastantes anos, em Braga pelo professor e etnólogo Joaquim Roque, já falecido, natural de Peroguarda sobre o canto do Baixo Alentejo. Continua também a ser defendida a influência do canto gregoriano no canto alentejano e não pode negar-se-lhe a sua influência na poesia em louvor do Deus Menino e em todos os demais textos religiosos, ligados ao culto cristão e o canto das Almas é, sem dúvida, o canto triste o verdadeiro grito de sentida súplica para alívio das almas que no Purgatório o estão desejando alcançar e que o canto alentejano foi capaz de tornar, como nenhum outro canto popular, num canto profundamente belo e solene. Mas se foi a fé dos cristãos que inspirou o fundo poético das canções religiosas populares, foi o canto alentejano dolente, solene, meditativo que não é demais supor já tinha um fundo religioso, anterior, muito possivelmente ligado a cultos pagãos, esse canto, sem dúvida, que foi a favorável e casual oportunidade encontrada para que o sentimento e a poesia, inspirados pela fé cristã em afortunada circunstância se enquadrassem nas primitivas canções populares do Povo desta região.
Até Stº. Ambrósio no Século IV da nossa era, as primitivas melodias cristãs corriam sem obedecer a qualquer ditame eclesiástico supondo-se que muitas destas primitivas melodias cristãs já teriam sido cantadas antes: na Grécia, no Egipto, na Mesopotâmia, na Roma pagã, servindo outros deuses, cantando "falsas concepções da matéria e da vida". Foi Stº. Ambrósio quem pela primeira vez as coleccionou e seleccionou, tendo nessa altura iniciado uma primeira e débil reforma das melodias cristãs primitivas. Duzentos anos depois, no Século VI, o Papa Gregório «São Gregório» também chamado: "Gregório o Grande", continuou o trabalho de colecção e selecção das melodias cristãs primitivas e a ele se atribuem grandes reformas na organização da música religiosa e a sua didáctica, tendo daí por diante o canto religioso eclesiástico seguido regras precisas e os desvios que ocorreram com o passar do tempo foram sendo corrigidos, mormente pelos padres beneditinos. Finalmente a Igreja em todo o mundo católico fixou-se numa última edição do Cantochão baseado em trabalhos dos Beneditinos que prevaleceu, assim se consolidando o que se passou a chamar de canto gregoriano.
A Igreja quando surgiu ocupou, sobretudo, os centros populacionais mais importantes, não tendo tido decisivo impacto, ao que suponho, na grande maioria das áreas rurais. Sobretudo nessas áreas não me parece que tenha exercido influência por intermédio das escolas de canto eclesiástico que às vezes são invocadas como focos de irradiação da cultura musical gregoriana. Na difícil busca das origens do canto alentejano muitas hipóteses se podem colocar. Porém afigura-se-me de muito duvidosa valia a que coloca o canto chão ou canto gregoriano na origem do canto popular alentejano. E se o canto popular do nosso povo alentejano, apesar da sua dimensão polifónica, poder lembrar a homofonia do canto chão, pela solenidade dos seus andamentos lentos, o caso é que nas canções populares, não religiosas do norte de Portugal, não se encontra nem a dimensão polifónica do canto alentejano, nem o seu estilo, nem os seus passos melódico/harmónicos, nem os seus andamentos lentos, nem a solenidade da sua postura que caracteriza as interpretações do canto alentejano, características deste canto e que se assumem desde logo nas canções populares profanas.
O norte do nosso País foi muitíssimo mais influenciado pela Igreja e tal situação, nem de longe se verificou no Alentejo. Assim é pelo menos estranho que o canto popular dos povos do norte não viesse a ter sofrido a influência melódica, rítmica, modal e de andamento do canto gregoriano. Por outro lado pode questionar-se se o Povo alentejano que andou sempre muito próximo de uma vivência panteísta, que é de crer já cantava as suas modas antes de a Igreja aqui se instalar, poderia de facto ser influenciado pela melodia, ritmo e andamento do canto gregoriano, música que ficou longe da maioria do Povo alentejano.
É inconfundível entre o panorama da nossa música popular o canto do nosso Baixo Alentejo. Mas não me atrevo a afirmar que o seu perfil é único entre as demais tradições culturais do Globo. Talvez na Ucrânia, sei lá, se encontrem reflexos que o lembrem e de certeza eu e a minha mulher ouvimos algo de muito semelhante aos nossos coros quando, há muitos anos, numa rua de Chechauen em plena montanha, ao norte de Marrocos, ao fim do dia, escutámos, surpresos, o canto árabe saindo de uma mesquita. E foi impressionante o que nos pareceu ouvir: um singularíssimo coro que parecia ter até o alto e o ponto no seu conjunto num canto dolente e solene tão à maneira do nosso canto alentejano. Não foi possível uma gravação, para isso não íamos preparados e a promessa que a nós próprios fizemos de lá voltar nunca chegou a concretizar-se. Falei no caso a Giacometti e a Fernando Lopes-Graça que igualmente pensavam que poderia realmente haver algo no nosso canto que fazia lembrar o canto árabe, mas também não foi concretizada a hipótese de eu e Giacometti por lá passarmos por essa cidadezinha de Marrocos como tínhamos combinado.
Concluindo este assunto sobre as origens do canto popular alentejano, problema que continua à espera de uma resposta convincente, não ajuda nada, segundo me parece, fixarmo-nos sobre opiniões que porventura se desejem tornar como definitivas e sem discussão, como por exemplo é o caso de se pretender, como ponto assente, estar na sua origem o canto gregoriano. É que, e aqui é que o problema se complica, antes do cantochão cá ter chegado já cá estava o canto popular onde muito provavelmente o povo foi influenciado pelo modo de cantar que de África passou o estreito e se acomodou neste interior alheio às influências que ao longo da história sofreu toda a costa algarvia. Não estou de acordo, por exemplo, com a opinião do Padre Marvão, grande admirador do canto do Baixo Alentejo, quando para ele, o que conta na génese do cantar do nosso povo é o canto gregoriano. Mas com ele concordo com a sua curiosa asserção, nesse trabalho que eu consultei, que flagrantemente contradiz a sua hipótese: "A nossa música alentejana não foi ensinada por ninguém, é espontânea; nasce do coração e da intuição dos alentejanos, com uma aptidão excepcional para o canto que tem as dimensões dos sagrados momentos da vida..." No entanto logo após se deixa seduzir pela sua ideia fixa e entra em nova antinomia quando, de par com a sua opinião sobre o sabor que tinham as modas exprimindo em "magistral sinfonia a força do canto comunitário, o prazer duma alegria festiva", não deixa de erradamente, a meu ver, acentuar o sabor das modas ao sabor do homofónico cantochão.
Por outro lado não deixa de ser curioso que Tomás Borba e Lopes-Graça no seu Dicionário de Música, editado em 1956, falem do canto reformado eugeniano, um canto modificado por Santo Eugénio, arcebispo de Toledo, ao qual terá aplicado a notação gótica introduzida em Espanha pelos Visigodos em 412. Este canto terá tido a influência tonal da igreja romana, mas não a influência do canto gregoriano, continua o texto do referido dicionário, que refere ainda que o canto eugeniano teria sido modificado pelo gosto dos adornos do canto oriental introduzido em Espanha pelos povos islâmicos que invadiram a Península. Curiosamente o referido dicionário fala ainda na existência de um canto moçárabe.
Por outro lado, e ao que me parece, não será de todo ilógico pensar-se que, afinal, o canto popular alentejano, com raízes no passado longínquo com posterior influência, possivelmente visigótica e árabe, foi talvez e desde sempre, antes do aparecimento do canto gregoriano, um canto cheio de espiritualidade, lírico, compassivo, de solene expressão, podendo afinal convir da melhor forma às exigências da fé cristã que veio depois. Assim deve ter acontecido com a canção do Deus-Menino, e com outras canções religiosas de poesia inspirada na nova fé, que tão bem se enquadraram no nosso canto popular. Assim o canto de amor e saudade pelas pessoas amadas, do amor à vida e à natureza, na expressão poética do ancestral lirismo de origem pagã passou a coexistir no mesmo modo de cantar com a expressão poética inspirada pela nova fé.
Não posso deixar de referir que desde o momento em que eu e a minha mulher escutámos o que nos pareceu um coro alentejano soando numa mesquita em plena montanha no norte de Marrocos ficámos seriamente meditando em tão surpreendente semelhança e desde então também mais nos inclinámos para admitir uma qualquer influência do canto melismático árabe, de ritmo lento, no canto melismático cadenciado do povo alentejano.
José Miranda:
Obrigado Dr. Henrique Pinheiro, isto é de facto uma prova de que, e por conhecimento próprio, os médicos que vêm de todo o Portugal, eles cá ficam de facto. Cá chegam, quando chegam ao nosso Alentejo, ficam de facto apaixonados e são capazes de transmitir sempre esta mensagem e conhecimento do que é o alentejano.

José Roque:
Bom... Bom dia também a todos, como já repararam houve aqui uma pequena troca, nós tínhamos programado dois oradores para a primeira parte e as comunicações para depois, de qualquer forma, como os oradores não tinham chegado ainda, tivemos que inverter um pouco os papéis, colocámos o Dr. Henriques Pinheiro nesta primeira intervenção e vou ter depois o prazer de, e é um motivo de orgulho para mim apresentar a oradora que vem a seguir: a Dra. Salwa Castelo-Branco, isto porque eu também represento aqui um Grupo Coral "Os Ceifeiros" de Cuba e dizer que gostava de realçar o carinho com que os elementos do grupo que aqui represento manifestam para si Drª. Salwa Castelo-Branco por todo aquele trabalho que desenvolveu em Cuba, há uma dezena de anos a esta parte, mais ou menos, e teve como resultado a edição de um CD para o qual, para além das modas o grupo contribuiu com a foto para a capa. Posto isto dizer que a Drª. Salwa Castelo-Branco é Professora de Etnomusicologia na Universidade Nova de Lisboa; é Directora do Instituto de Etnomusicologia, na mesma Universidade; estudiosa do alentejano e de outras tradições musicais portuguesas. Tem várias publicações sobre o alentejano e outras tradições musicais portuguesas. Vamos ouvi-la.
Salwa Castelo-Branco:
Muito obrigada! e vou ser breve e vou falar mais do futuro do que do passado. Gostaria de começar por manifestar o meu regozijo pela iniciativa do I Congresso do Cante Alentejano que, seguramente irá proporcionar uma importante oportunidade para debater questões em torno de uma das tradições mais dinâmicas em Portugal. Quero aproveitar, esta oportunidade, para agradecer aos organizadores o convite que me dirigiram para participar neste evento.
A minha relação com o cante começou em meados dos anos 80, quando tive o privilégio de conhecer de perto a vila de Cuba e os seus grupos corais, onde tenho lá muitos amigos. Seguidamente tomei contacto com grande número de grupos, quer no Alentejo quer na área Metropolitana de Lisboa. Este contacto com o cante do Alentejo e os seus portadores, iniciada há mais de 10 anos, marcou-me pessoal e profissionalmente e continuará a constituir um dos focos do meu interesse no futuro. A grande dinâmica do cante alentejano, quer no Alentejo quer no seio das comunidades alentejanas na cintura industrial de Lisboa e Setúbal está patente nas actividades nos cerca de 100 grupos corais activos, que o livro do Sr. José Francisco Pereira identifica.
Apesar da literatura sobre o cante alentejano ser uma das mais extensas no panorama de estudos sobre a música tradicional portuguesa, julgo que há ainda muito trabalho a realizar, quer na documentação e na inventariação do reportório, quer no estudo das múltiplas facetas musicais, históricas, sociais e políticas do cante, o que representa um grande desafio para etnomusicólogos e outros cientistas sociais. Nesta ocasião limitar-me-ei a sugerir algumas áreas de actividade e questões que me parecem prioritárias. A primeira prende-se com a criação de um arquivo audiovisual para o Alentejo. Como sabem não existe em Portugal nenhum arquivo sonoro nacional e a fundação de uma instituição que garanta a preservação da memória musical do Povo Português, não parece constituir uma prioridade para o governo o que constitui uma grave lacuna para um país com um legado musical extremamente rico. Existem gravações que foram realizadas por vários investigadores e entusiastas/coleccionadores, em todo o País, pelo menos desde meados do nosso século que se encontram dispersas em várias instituições publicas e colecções particulares sem haver as condições que possam garantir a sua preservação, inventariação e acesso aos estudiosos aos grupos e ao público. A salvaguarda das gravações existentes, utilizando meios digitais, actuais, de modo a garantir a sua preservação, para as próximas gerações é uma tarefa extremamente urgente. Por outro lado o reportório gravado deve ser inventariado e a sua documentação sistematizada e completada. Muitas vezes existem colecções muito extensas com uma documentação anexa extremamente breve indicando apenas o local, a data e talvez o título, mais nada. Penso que ainda estamos a tempo para completar esta documentação. Além disso a produção fonográfica, actual, quer pelos próprios grupos, quer pelas empresas discográficas, em Portugal e no estrangeiro, deve ser sistematicamente recolhida, inventariada e preservada. Parece-me que há imenso material disponível, disperso, no mercado, que é possível comprar, que foi publicado, não para fins de estudo propriamente dito, mas que constitui de facto uma fonte extremamente importante.
Dada a inexistência de um arquivo sonoro, a nível nacional, parece-me urgente a criação de um arquivo fonográfico, regional ou distrital, tendo os seguintes objectivos:
1. Reunir e salvaguardar todas as gravações de campo e de arquivo, existentes do cante e das outras tradições musicais do Alentejo.
2. Complementar as gravações sonoras com a documentação escrita e iconográfica disponível.
3. Inventariar os reportórios documentados, incluindo textos e melodias.
4. Recolher, arquivar e documentar, sistematicamente a produção fonográfica actual: CDs e cassetes. Tanto dos próprios grupos, como das empresas discográficas.
5 Promover projectos de documentação audiovisual do cante e das outras práticas musicais actuais do Alentejo que poderão ser levadas a cabo em colaboração com a Universidade que disponibilizará etnomusicólogos qualificados para colaborar com estudiosos alentejanos: os próprios portadores das tradições. Estes projectos deverão documentar não só o desempenho do cante, mas também a memória dos seus cantores, compositores e poetas. É muito importante falar extensamente com estas pessoas que são portadores da nossa história recente e registar as suas memórias porque através dessas memórias podemos reconstituir um passado extremamente rico onde o cante fazia e tem um lugar importante.
O arquivo regional com o perfil, acima delineado, deverá ser aberto a consulta dos grupos dos investigadores e do público em geral. A importância para os investigadores é óbvia, mas talvez nós não pensemos na importância que tem para um jovem de 14 ou 15 anos que queira ouvir, como é que os seus avós cantavam, há 50 ou 60 anos e ir a um arquivo e de facto ter acesso a isso. Eu tive um bocado esta experiência, nos Estados Unidos, onde os arquivos, de facto, desempenharam um papel extremamente importante na revitalização de tradições que já tinham desaparecido. Por outro lado os próprios grupos de facto, muitos têm em seu poder gravações antigas, de 20 ou 30 anos, que serviram como fonte importantíssima. Se não houver um arquivo estas gravações vão-se perder. Vão ficar dispersas. Portanto é mesmo extremamente urgente reuni-las, disponibilizá-las, sistematizá-las e facultá-las para consulta geral.
Também pensando no futuro gostaria de dizer algumas palavras de tópicos e questões que me parecem importantes estudar no futuro e antes disso gostaria de falar do que é a etnomusicologia, hoje. A moderna etnomusicologia é uma disciplina que visa o estudo da música enquanto fenómeno cultural, social, económico e político dinâmico. O trabalho do etnomusicólogo ou da etnomusicóloga não se limita a recolha, a recolha é importante mas não é a única coisa que fazemos. Abrange um estudo mais vasto de processos e comportamentos sociais em que a música desempenha um papel central. Segundo esta perspectiva, da moderna etnomusicologia, a noção de música não se limita à componente acústica mas abrange um leque mais vasto de comportamentos e processos, incluindo os gestos, os movimentos, a palavra.
O cante é uma das tradições, musicais, mais documentadas e estudadas em Portugal o que não quer dizer que o seu estudo está feito à exaustão, de maneira nenhuma, as obras de algumas das pessoas que foram referidas aqui. Por exemplo o padre António Marvão; o padre António Cartageno; Prof. Manuel Joaquim Delgado; Prof. João Ranita da Nazaré, entre outros, são referências imprescindíveis. Por outro lado as gravações publicadas pelos próprios grupos ou de empresas discográficas e por estudiosos são documentos valiosos que fornecem uma perspectiva histórica sobre a prática musical.
O trabalho realizado em torno do cante alentejano focou, sobretudo, a sua origem (apesar do facto como referiu o Dr. Henriques Pinheiro, continue a ser uma questão em aberto e talvez nunca se consiga resolver), as suas características musicais, a sua estrutura, etc. a classificação do reportório e as suas mudanças (refiro-me ao trabalho do Prof. Ranita da Nazaré, nesta questão). A documentação e a investigação realizada, fornecem um excelente ponto de partida para futuros trabalhos que deverão dar prioridade, sobretudo, às questões que se prendem com a realidade actual do cante e com a sua história contemporânea. História essa que podemos ainda documentar devidamente.
Parece-me importante desenvolver projectos de investigação que explorem os seguintes aspectos da prática do cante. E vou mencionar apenas alguns que me parecem muito importantes:
1. O Historial da transplantação do cante para a Cintura Industrial de Lisboa e Setúbal e o seu impacto sobre a prática do cante, quer no Alentejo, quer na área Metropolitana de Lisboa (estão presentes entre nós algumas pessoas e outras que iremos ver mais tarde. Algumas das mais importantes nesse processo). Temos que documentá-lo de facto.
2. O papel do cante na vida das comunidades quer no Alentejo quer na Cintura Industrial de Lisboa e Setúbal. (Porque é que as pessoas fazem esse esforço de ir aos ensaios, de reunir as pessoas, de fazer as suas saídas. É um esforço muito grande. Repetidamente os meus amigos em Cuba, no Barreiro e em outros sítios onde tive o privilégio de contactar de perto com esta tradição sempre me referiam a dificuldade que tinham em continuar. Mas olhamos para eles e alguns estão no grupo há 40 ou 50 anos. É de facto notável. E na minha perspectiva a pergunta que se põe: porquê? porque é que as pessoas se reúnem e continuam a cantar desta maneira?).
3. A relação do cante e as outras práticas musicais no Alentejo, no passado e na actualidade (tem-se ideia que o cante é uma coisa separada do resto, muito distinta, mas parece-me que se olharmos um pouco mais, profundamente, podemos descobrir algumas relações. Acho que é uma questão importante a desenvolver).
4. Por outro lado parece-me importante, também, desenvolvermos trabalho sobre o papel dos indivíduos, na criação e na divulgação do cante. Concretamente precisamos de identificar e elaborar histórias de vida e identificar a obra dos poetas, dos compositores, dos estudiosos e dos dinamizadores do cante. Alguns estão ainda vivos, felizmente, outros já não estão entre nós, mas existem entre nós pessoas que os conheceram bem e que aprenderam com eles e que nos poderão guiar para de facto reconstituir essa história.
5. A relação entre o cante e a organização social e política do Alentejo. As mudanças actuais do cante: o que está a mudar, de facto? (penso que neste Congresso vamos aprender muito sobre isso) Como ocorreram? Quando? Porquê? O que significam?
Estas são, apenas, algumas das questões que me parecem fundamentais abordar.
Para terminar gostaria de afirmar a abertura do Instituto de Etnomusicologia da Universidade Nova de Lisboa, de que sou presidente, para colaborar com indivíduos, grupos e entidades no desenvolvimento de trabalhos de comutação e investigação sobre o cante e as outras tradições musicais do Alentejo.
Muito obrigada!.

José Miranda:
Obrigado Drª. Salwa Castelo-Branco pela sua excelente exposição. E, têm 5 cinco minutos para fazer algumas perguntas aos oradores.
???
Salwa Castelo-Branco:
Bom, digamos, eu não tenho uma postura purista, no sentido, tal como muitos compositores se inspiraram pela música tradicional e não procuraram replicar há espaço para a criatividade para uma reinterpretação, uma recriação, uma transformação em outros formatos e portanto temos uma riqueza muito grande ... grupos que optam por tentar uma continuidade muito próxima do passado e outros que preferem reinterpretar e abrir o leque para outros timbres. Acho que são abordagens possíveis e legítimas.
Joaquim Soares:
Qual é o entendimento que se faz da junção do cante propriamente dito e etnografia ...
Salwa Castelo-Branco:
Penso que o estudo do cante deve ser sempre um estudo enquadrado no seu meio social e cultural, portanto penso que futuros estudos deverão inserir, digamos, o cante nesse meio e não tratar, apenas, do som musical em si. Neste sentido seria uma representação muito mais ampla porque o cante faz parte da vida das pessoas, da sua história, do seu dia-a-dia, da sua identidade pessoal e social e portanto ao representá-lo, ao estudá-lo, ao descrevê-lo, penso que essa inserção devia sempre ter prioridade. Mas penso que sempre que um grupo actua, para públicos que conhecem pouco ou não conhecem o cante é uma mensagem muito importante e leva-se muita coisa e muitos grupos fazem uma apresentação e dão um enquadramento que ajuda muito ao ouvinte para de facto perceber melhor o que vai ouvir. Quanto mais se faz melhor é e se começarmos a pensar um pouco nos criadores, nos poetas, na maneira como interagiram, como criaram, como nos deixaram este legado, talvez também seja mais uma via para termos um enquadramento mais amplo.
Francisco Torrão
???
Salwa Castelo-Branco:
Em primeiro lugar gostaria de o cumprimentar, ainda não tivemos oportunidade de falar, hoje. Eu sou estudiosa e grande apaixonada pelo Alentejo e pelo cante e confesso que não sinto que o meu papel aqui é digamos, pronunciar-me sobre aquilo que os grupos devem fazer. Eu penso que é muito interessante que, hoje em dia, existam grupos femininos, como sabem melhor do que eu, as mulheres sempre cantaram e até cantavam em privado com os homens, também no trabalho e portanto hoje em dia também cantam em público e eu acho que isso é um desenvolvimento muito interessante. Tenho ouvido alguns grupos masculinos com alguns elementos femininos, mas penso que este fenómeno, talvez, seja um fenómeno que esteja a diminuir e o que estamos a ver é mais grupos femininos, exclusivamente e masculinos. Acho para mim, do meu ponto de vista, é uma riqueza podermos ter estes grupos femininos e é óptimo que as mulheres também possam actuar em público e também garantir a manutenção desta tradição.
José Miranda:
Ora bem, vamos iniciar as comunicações e o primeiro comunicador é Julián del Valle.

Julián del Valle:
Bom dia para todos. No Chile existe o Agrupamento Nacional de Folcloristas que se chama "ANFOLCHILE", que por motivos familiares e por me ter dedicado ao folclore do meu País, estive em comunicação com eles, esta semana, e fizeram questão, em me encarregar de transmitir o seu apoio e os seus cumprimentos a este I Congresso do Cante Alentejano.
A Direcção do espaço das 7 às 9 do Centro Cultural de Belém, também, faz questão de estar presente e assim poder dar todo o apoio que está dentro das suas possibilidades.
Ora, como músico quero fazer alguma coisa, uma resenha pequena. No Chile (falo bastante do Chile, porque temos uma experiência mais antiga do que a vossa) nós tivemos grandes músicos, como Violeta Parra, Vitor Jara (grande músico Chileno, que morreu com o golpe de estado em Chile, no ano de 1973). Mas Vitor Jara, no ano de 1970, conseguiu reunir em Santiago do Chile, todos os folcloristas e gente que estava preocupada com a investigação da nossa música chilena. Destas reuniões nasceu uma escola, dentro do conservatório de Santiago, que era uma escola para professores de folclore, onde tive a sorte de participar, também. Nessa escola nós tínhamos ramos muito específicos de estudo que tinha que ver com a nossa experiência folclórica, por exemplo: psicologia, antropologia, estudo da música, mas fundamentalmente o estudo prático da música e das nossas tradições através das investigações de todos aqueles que participavam na escola. Penso que este, talvez seja um pequeno contributo que o meu País gostaria de oferecer a vocês, portugueses, porque penso que dentro da música coral alentejana, uma das coisas por que se está a pecar, a fazer pecado mesmo, é não existir, precisamente, essa escola tão necessária, donde poderia haver, sugiro eu, pessoas que poderiam ditar cátedra, sobre a música coral alentejana, como aliás foi dito por estes Srs. Drs. que ouvimos falar esta manhã. Talvez seja muito mais necessário, mesmo dentro de uma escola, ensinando-nos todo aquele conhecimento que eles têm, que dentro mesmo do congresso. Era muito mais importante porque tudo aquilo que eles não podem transmitir será para as gerações futuras o alicerce para poder preservar a vossa tradição, o vosso folclore.
Agora, também já estou ficando velho, já preciso de óculos. Queria dizer que é uma lástima também não estarem aqui bem representados, e isto convém deixar bem claro, os diversos concelhos de Portugal e concretamente os do Alentejo, através dos vereadores da cultura, ou dos seus representantes. Para esta pequena escola que poderia funcionar dentro do Alentejo, por exemplo em Beja ou Évora que são focos centrais do Alentejo, acho que se podia ter muito do apoio, através das Câmaras Municipais, por isso mesmo gostava que as câmaras estivessem aqui, em massa, e não como estão agora, ou da própria Secretaria de Estado da Cultura ou das diversas instituições que se dedicam ao estudo e à investigação do folclore.
Nada mais... Bom dia!
José Roque:
Depois da intervenção de Julián del Valle, vamos também dar um espaço de quatro ou cinco minutos para quem quiser colocar alguma questão. Pedimos é que sejam breves, se possível.
José Chitas:
O Dr. Henriques Pinheiro focou dois aspectos do cante alentejano, um relacionado com o lirismo da poética alentejana, outro com a mística da quase religiosidade do entre o quase gregoriano e o alentejano. Eu gostaria de saber quando também se referiu às características, psicológicas, ontológicas do alentejano com a sua verticalidade, onde é que se pode inserir, também o seu aspecto contestatário. Porque o que foi falado, sobre o lirismo, panteísmo, o amor pela natureza mas falta aqui, talvez, alguma coisa para referência que é parte contestatária do cante alentejano".
Henriques Pinheiro:
O meu contacto com o Povo Alentejano, data de há cinquenta e muitos anos, já sou velho, e na minha prática de médico, eu verifiquei que o povo alentejano, naquelas relações que eu tive durante todos esses anos, no dia-a-dia, com todos os problemas que os alentejanos tinham, que eram gravíssimos, era de facto um servo da gleba. Eu vou contar, para definir, realmente, esse quadro que eu encontrei quando eu fiquei chocado com o seguinte episódio que é quase uma anedota. É quase uma anedota, mas não é, foi uma coisa verdadeira, portanto houve um médico que pediu para eu o substituir em Baleizão, onde eu precisamente ouvi pela primeira vez o cante alentejano numa madrugada, etc. Bom, fui exercer clínica nessa aldeia, próxima daqui, a 12 quilómetros, estive mais tempo do que supunha, porque entretanto o médico não pode retomar a clínica conforme disse que ia retomar, prolongou-se durante bastante tempo esse contacto com o povo da aldeia. Bom, eu tinha, às tantas, enfim, muitos doentes, muito carenciados de muita coisa. Havia um homem, um homem emagrecido, era praticamente um pele-e-osso, não era bem mas era muito magro, queimado do sol (isto passava-se no Verão), que ia à consulta e dizia que estava muito fraco, que se sentia com poucas forças e eu que já sabia, pelos contactos que tinha, que a alimentação era muito deficiente, sobre todos os pontos de vista, receitava-lhe aquilo que eu via que podia ajudar: mais vitaminas, mais extractos de carne, mais isto, aquilo e aqueloutro e o homem continuava a ir à consulta, mas continuava a dizer que se sentia fraco. Bom, uma consulta e outra e a situação era sempre a mesma. Evidentemente que o homem não tinha nada de grave, não era tuberculoso, eu investiguei, mandei fazer radiografias, enfim, fiz um exame clínico tão preciso quanto possível e o homem não era tuberculoso. Estava magro não era por isso, não era por ser doente, ou ter alguma doença infecto-contagiosa, nomeadamente a tuberculose que nesse tempo era uma coisa muito séria. Nesse tempo setenta por cento dos tuberculosos morriam, atenção (estamos a falar no ano de 1955). Eu fui tuberculoso, não fiz qualquer tratamento tive a sorte de calhar nos trinta por cento. Eu era dos trinta por cento que não morriam. Bom, o homem queixava-se uma vez e outra e outra que estava fraco, que estava fraco. Às tantas eu perguntei, ouça lá: diga-me lá qual é a sua vida e o homem contou-me qual era a sua vida. Levantava-se de madrugada, ainda o sol não tinha nascido para ir começar o trabalho, ao romper do sol, numa herdade longe de Baleizão e então levantava-se, tinha de dar de comer às bestas, aparelhar as bestas ao carro e ir para uma herdade longe, começar o trabalho ao romper do sol. Largava o trabalho ao pôr do sol e quando chegava a casa já eram dez horas, dez horas e meia, punha as bestas no estábulo, dava-lhe de comer e quando o homem chegava a casa eram onze horas e meia, meia noite. Ó homem, você trabalha de uma maneira, que não pode deixar de estar cansado, e eu nessa altura, ingénuo disse: ó homem, porque é que não pede ao seu patrão para lhe dar mais descanso, o senhor precisa é de descansar mais, na minha ingenuidade. Aprendi muita coisa com o povo alentejano, como eu disse na minha comunicação. Estas e muito mais coisas eu aprendi com o povo alentejano. O povo alentejano, enriqueceu-me o meu sentimento, os meus conhecimentos e as minhas reacções perante a vida, porque eu era lá de cima do norte, onde não havia estes problemas. Um dia (o homem continuou fraco), mas um dia entrou-me todo risonho pela consulta: - Sr. Dr. já descanso mais. - Ah sim, óptimo! então o senhor sempre disse ao seu patrão e ele resolveu dar-lhe mais descanso. - Não Sr. Dr. é que as bestas estavam a emagrecer e ele resolveu dar mais descanso às bestas. Este era o ambiente que se vivia. Ora bom, respondendo à sua pergunta, eu notei sempre na generalidade do povo alentejano uma paciência inaudita e eu só verifiquei com a continuidade de vivência com o alentejano, verifiquei, que só os politizados é que realmente tinham uma atitude de contestação activa. Agora, de uma maneira geral, o povo alentejano era um "santo povo", era e continua a ser, evidentemente. Um povo que eu amo, que eu estimo, mais do que o povo da minha região que é muito subserviente, muito louvaminha, muito não-sei-quê. Passa o Sr. Dr., ou passava, nessa altura: - "Sr. Soutoor"; "Sr. Prioor"; "Sr. Professoor". E aqui no Alentejo, em Baleizão, quando eu lá cheguei, sabeis vós como eles me saudavam "Óo"; "óo". Isto foi a realidade que eu vi, nessa altura, respondendo à sua pergunta, parece que respondi tudo.
José Roque:
Muito obrigado, de qualquer forma gostava de deixar uma nota: esta questão colocada pelo José Chitas pecou por extemporânea. Já tinha havido dois oradores, as perguntas deviam ter sido feitas, logo na altura. Já houve uma comunicação essa pergunta deveria ter sido feita ao Julián del Valle. Vamos esperar que isso não se repita, até para o bom andamento desta "carruagem". E pronto, depois disto, vamos a mais uma comunicação e eu chamava para intervir alguém em representação da “Alma Alentejana".
Eduardo Raposo:
Bom dia a todos. Vou apresentar uma comunicação denominada:
O CANTE - "ALMA" DO POVO ALENTEJANO - E A SUA RESISTÊNCIA AO PODER
Senhores Congressistas, Exmº. Senhor Presidente da Mesa, Exmª. Comissão Organizadora, do Congresso do Cante Alentejano, antes de mais, permiti-me que em nome da Alma Alentejana vos saúde pela realização deste belo congresso, que está agora na sua fase final onde, aliás, já tivemos o prazer de participar, num debate com o nosso amigo Francisco Naia, logo em Julho, na Moita, por ocasião da Feira Etnográfica "Viver o Alentejo", aquando do lançamento do livro "Corais Alentejanos", de José Francisco Pereira.
Quero ainda em nome da Alma Alentejana, deixar um abraço solidário a todas as vítimas do temporal que nos últimos dias atingiu, particularmente, o Baixo Alentejo. Neste sentido, a Alma Alentejana iniciou já uma campanha de solidariedade, para a recolha de roupas e produtos de primeira necessidade, nos concelhos de Almada e Seixal.
E como a divulgação, a defesa e a preservação da cultura alentejana é uma das razões primeiras da existência da nossa associação, não podíamos deixar de estar presentes. Aliando um trabalho de investigação que desenvolvi nos últimos anos para uma dissertação da tese de mestrado, que estou a finalizar, denominada "O papel sociocultural e político do canto de intervenção na oposição ao Estado Novo", e a importante colaboração do Francisco Naia - que na sua qualidade de etnomusicólogo fez recolhas de "modas" tradicionais, que depois compôs, estando incluídas actualmente no seu reportório de cantor da música tradicional alentejana. Contámos com a sua amizade e companheirismo, mas também com os profundos conhecimentos que viabilizaram a realização deste breve trabalho, tanto lançando pistas como respondendo a outras tantas interrogações. Foi assim uma preciosa fonte oral, para além de obras de que nos socorremos para um enquadramento geral, casos de A Canção Popular Portuguesa, de Fernando Lopes-Graça, Musica Tradicional Portuguesa - Cantares do Baixo Alentejo, de João Ranita da Nazaré e "Portugal, Raízes Musicais" (recolha publicada pelo Jornal de Notícias em CD's e textos de apoio) da autoria de José Alberto Sardinha. Nesse âmbito, aceitei a solicitação e o desafio que me foi proposto, de, no âmbito do Gabinete de Imprensa da Alma Alentejana, e contando ainda com o apoio do Jorge Figueira, também elemento da Direcção e do Gabinete de Imprensa da nossa associação, embarquei nesta aventura, a presente comunicação, que vos passo a apresentar.
A canção popular portuguesa - seu significado estético e valor nacional
Partindo do pressuposto, porventura pacificamente aceite, de que a canção popular portuguesa, é, na sua essência e na sua primordial riqueza, rústica e campesina, e que, assim, é uma crónica expressiva e viva do povo português, ao contrário da pobreza e banalidade da música urbana, que para além de raras excepções actuais - caso dum Sérgio Godinho - conceptualiza-se na música pimba, como antes no nacional-cançonetismo.
Assim sendo, a música popular, sendo produto e documento da actividade estética, quer pelo seu valor de ordem educativa e artística, mas também pela linguagem e o conteúdo, afirma o seu autêntico carácter nacional, de onde é possível extrair material, mas encontrar as premissas estilísticas necessárias e as sugestões no intuito de se criar uma música culta, a sua grande riqueza e inestimável capacidade de se autorenovar, transformar, mas ao mesmo tempo, persistir oralmente ao longo dos séculos, faz claramente da canção tradicional portuguesa o cerne da canção portuguesa, onde a música culta vai beber todas as suas virtualidades, e não o contrário.
As modas, características e espaço geográfico
Como nos diz Fernando Lopes-Graça "(...)não restam dúvidas de que os cantos corais alentejanos constituem uma das mais assinaláveis expressões do sentir musical da gente portuguesa - na espécie, a gente alentejana, cuja índole a um tempo altaneira, caprichosa e ensimesmada(...)", e que eles (nós, neste caso) reflectem de uma maneira inequívoca, "(...) do mesmo passo que testemunham de uma formação e de uma vivência estética colectivas, que muito podem prender a atenção da sociologia e da etnomusicologia.
No entanto, a música tradicional do Alentejo (que parece vir confirmar o quase axioma de que a música regional portuguesa tem a sua vera fisionomia no domínio vocal) não se reduz aos cantos corais de que temos vindo a falar.” Cantos religiosos monódicos, assim como os cantos do trabalho “(...)enriquecem e completam o âmbito dimensional mais ou menos consabido da música alentejana, do mesmo modo que ampliam o conhecimento e as noções sobre o corpus da música regional portuguesa(...)", pelo que, ainda segundo Lopes-Graça, pode-se definir o povo alentejano "(...)como sendo o mais «musical» da gente portuguesa "(...) entendendo-se por aí a sua natural capacidade para traduzir e conseptualizar em canto, a sua rara espontaneidade mélica, "(...) melódica (...)enfim, aquilo a que poderemos chamar a sua temperamental disponibilidade lírica, que o leva a achar boas todas as ocasiões, todas as horas, para dar largas à sua inata musicalidade".
As modas têm um reportório da música vocal de tradição oral do Baixo Alentejo. Têm características bastante particulares e encontramo-las numa região que a grosso modo corresponde ao Baixo Alentejo, isto é, uma faixa mais ou menos plana compreendida entre a raia e o litoral. (Era para vermos a imagem, mas um problema técnico impede-nos mas eu sugiro que imaginemos, porque conhecem bem o Alentejo, todos os que aqui estão, com certeza) Esta região delimitada a Norte pelas povoações de Reguengos de Monsaraz, Monte de Trigo, Torrão e Grândola; a Sul pela Mina de São Domingos, Mértola, Almodôvar e Odemira; a Oeste pelo Mar; e a Leste pela fronteira espanhola compreendida entre Reguengos de Monsaraz e a Mina de São Domingos. Por outro lado os coros polifónicos do Baixo Alentejo terão tido a sua origem na música eclesiástica, de que são exemplo o "Cântico ao Menino" e o "Canto dos Reis".
Os diversos tipos de cante
O cante alentejano é o canto na sua vertente tradicional, que embora ganhe um tom dialectal com as características de cada região onde cantado, personifica o "cantar as modas" na sua verdadeira pureza e essência. Serpa, Pias, Moura, Barrancos, Sobral da Adiça - onde encontramos o chamado cante raiano - assim como Almodôvar, Castro Verde ou Ourique, são alguns exemplos da maneira diferente como se canta de região para região. O cante alentejano é pois o cante vocal na sua forma mais pura, onde é apenas utilizado o alto, o ponto e os suportes.
Podemos então propor a divisão do cante em três grandes grupos:
O cante tradicional que se pode subdividir em: cante rural; cante ribeirinho; cante raiano; cante religioso; cante mineiro e cante do trabalho. Uma característica comum a este grupo será a ausência de instrumentos musicais.
Num segundo grande grupo, que designaríamos por cante popular, podemos incluir os grupos corais, os grupos etnográficos, os coros aligeirados, as cantigas dos mastros e os cantados à capella. A sua origem é sobretudo rural, mas nalguns casos pode ser a conjugação do rural com o urbano, ou sobretudo este. Uma das suas características é a introdução de elementos novos que, de alguma forma, o afastam da pureza tradicional do cante. Surge o suporte instrumental mas também os trajes, que são elaborados a partir de recolhas e estudos efectuados. O cante campaniço - que à partida se poderia enquadrar neste grupo, é, em certa medida um caso à parte. Caracterizando-se pelo uso da viola campaniça que é seguramente das mais arcaicas violas populares, e um dos mais ricos e interessantes instrumentos arcaicos populares portugueses, que se encontra actualmente em vias de extinção, apenas circunscrito a aldeias dos concelhos de Odemira, Ourique, Castro Verde, mas cuja expansão geográfica atingiu, em tempos, todo o Baixo Alentejo.
Um terceiro grupo corresponde ao cante tradicional cantado nas grandes urbes, como na região da Grande Lisboa e nas comunidades emigrantes como é o caso de Toronto, Amsterdão, Bruxelas e também em França.
A vertente interventiva do cante alentejano
A resistência a todo o tipo de poder encontra-se no cante que designamos por tradicional e que é cantado pelos mais velhos, que não perderam as raízes à terra e mantêm a tradição mais pura e ancestral do cante vocal, transmitido oralmente de pais para filhos ao longo dos tempos. É muitas vezes defendido[1] que tenha tido as suas raízes nos coros gregorianos, quando em tempos muito recuados era forma de cantar em coro permitida pelo poder. A sua característica comum revela-se na denúncia e resistência ao poder, às injustiças, mantendo a dignidade e a altivez que caracteriza o alentejano, mesmo nas condições sociais mais precárias, mantendo sempre a cabeça levantada.
Consubstancia-se em muitos casos nas modas cantadas nos trabalhos do campo. São exemplos disso cantigas como:
Toda a vida fui pastor
Toda a vida guardei gado
Tenho um buraco no peito
De me encostar ao cajado

De me encostar ao cajado
E todo o dia ali estar
Toda a vida fui pastor
Não me mandaram estudar
ou esta:
Ó Serpa pois tu não ouves
Os teus filhos a cantar
Enquanto os teus filhos cantam
Tu, Serpa deves chorar (...)
Outrora entoados nos campos durante os trabalhos agrícolas por homens e mulheres, este tipo de cante foi-se tornando maioritariamente masculino, à medida que a mecanização da agricultura levou à sua mudança para a taberna, onde o acesso era praticamente interdito às mulheres que deixaram assim, progressivamente, de participar nestes corais polifónicos.
Mas se estas modas deixam antever uma revolta subjacente a uma condição social inferior, onde a constatação dessa mesma condição não deixa lugar à acomodação, antes sim, à denúncia, que embora se misture com um certo misto de tristeza, preconiza necessariamente uma vontade de mudança.
A ironia também está presente nestas modas, como acontece na que se denomina "Moreanes" e tem o seguinte refrão:
Mas que linda comitiva
Que eu vejo ali a passar
São os nossos governantes
Que nos vêm visitar
ou a sátira mais mordaz e jocosa, caso desta moda:
Maria tem um menino
Não sabe quem lá lho pôs
Foi o cura de Marvão
Ou o padre de Estremoz
e continua:
As Comadres lá na aldeia
Falam com certa razão
Foi o padre de Estremoz
Ou o cura de Marvão.
É um cante com determinadas características, que se revela extremamente contundente na sua vertente diacrónica, falando de temas como a miséria, o trabalho, a dor, a alegria, a tristeza e a própria velhice, que, se encontra tratada no cante tradicional, como é o caso da seguinte moda:
Eu gostava de cantar
Mas agora já não canto
Eu agora já sou velho
Mandam-me assentar a um canto
e continua,
Já não vou domingo à feira
Já não ouço os passarinhos
Já não bebo os meus copinhos
Já me sento à lareira
Os comboios, meio de transporte importante num Alentejo não muito longínquo, onde havia poucas e más estradas, e o burro era muito usado, são também focados, numa perspectiva de revolta contra os poderosos:
Já lá vem o comboio novo
Muito bem embandeirado
Se as bandeiras fossem de ouro
Não trajava de encarnado.
Mas esta característica diacrónica do cante revela-se em cantigas já posteriores ao 25 de Abril, como a conhecida "Alentejo Produtivo", de José Vicente.
E porque os cursos de água - o Guadiana, o Sado e o Mira, nomeadamente - são também uma característica marcante do povo alentejano, ocasionam, por vezes, a existência de modas onde se inter-relacionam a água com o amor e a paixão. Assim, antes de terminar, gostaria de recordar duas modas muito belas:
A ribeira quando enche
Vai de pedrinha em pedrinha
E o homem que leva a barca
Leva o meu bem na barquinha
assim como outra, porventura mais divulgada:
Rio Mira vai cheio
E o barco não anda
Tenho o meu amor
Lá na outra banda

Lá na outra banda
Lá no outro lado
Ribeira vai cheia
E o barco parado
Conclusão
Para concluir, gostaria de dizer que o cante alentejano mantém as características mais genuínas e ancestrais da forma de cantar do povo alentejano. Personifica, em muitas das suas formas, uma resistência ao poder ao longo dos tempos, interpretado pelos mais velhos que não perderam as raízes à terra.
Na sua vertente popular, é interpretado por solistas, cantores e grupos etnográficos que transformam e, por vezes, adulteram a sua estrutura original.
Por outro lado, o cante rural entoado nas urbes, fora do Alentejo, representa a resistência ao desenraizamento dos que debandaram para as grandes cidades, mas que mantêm a Alma Alentejana, e daí não posso deixar de fazer uma referência, obrigatória, ao grandioso trabalho desenvolvido, em defesa do cante alentejano, ao longo de toda a sua vida, pelo Francisco Paquete.
Muito obrigado.
José Miranda
Obrigado Eduardo Raposo, pela sua brilhante exposição e mais uma vez relembro que as pessoas que vão agora fazer perguntas, que sejam breves, porque de facto estamos muito, muito atrasados. Já temos um outro comunicador que vai deixar este espaço, porque estamos muito atrasados. Posto isto não há mais perguntas, vamos fazer um intervalo para o café. Desde já agradecemos à mesa, muito obrigado. Obrigado a todos e de facto os Congressos, habitualmente as pessoas costumam dormir um bocadinho e felizmente, aqui, pelo que eu estou a ver ainda ninguém adormeceu, o que é bom sinal. Obrigado.
José Roque
Só dizer uma coisa, nós tínhamos programado para intervalo cerca de 15 minutos, vamos tentar encurtar esse espaço para que ganhemos algum tempo no segundo painel.
[1] Embora a sua génese seja, em certa medida, havendo quem sustente a sua origem gregoriana, eclesiástica ou cristã e quem advogue a sua origem árabe ou islâmica. E se porventura a primeira destas teses é a que terá mais adeptos, todavia, sendo inegáveis os laços culturais milenares análogos em toda a bacia mediterrânica – onde se encontram sonoridades com semelhanças, por exemplo entre o cante alentejano e as expressões musicais da Córsega ou do Magreb -, não obstante a investigação para concluir da génese do cante alentejano, estar ainda para fazer, quanto a nós, o que atrás ficou dito, pode consubstanciar a hipótese de uma raiz comum.

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