TRATADO DO CANTE

"OS GRUPOS CORAIS ALENTEJANOS NA DITADURA SALAZARISTA

Uma velha fotografia pendurada numa parede na Casa do Alentejo chamou-me a atenção. Já por ali tinha passado mas só naquele momento, não sei por que impulso, algo me fez parar. É que naquele numeroso grupo de cantadores alentejanos no Páteo Árabe daquela Casa Regional, estavam caras conhecidas e até familiares meus, todos desaparecidos com exceção de um jovem de calça clara, conhecido por "mascote" do grupo, ao centro: o meu amigo e conterrâneo José Santana. ISTO NO QUE TOCA A UM GRUPO.
Posteriormente, consultando velha papelada em casa, que sabia existir, juntei os factos e verifiquei que se tratava dos grupos corais alentejanos de MÉRTOLA, VIDIGUEIRA, VILA VERDE DE FICALHO e da então ALDEIA NOVA DE SÃO BENTO, que vieram a Lisboa há setenta e tal anos participar num «SARAU ALEMTEJANO» (assim mesmo com esta grafia desusada rezava o programa) que a Casa do Alentejo promoveu e realizado no Teatro São Luís na Capital, entremeando as modas alentejanas, antigas, lentas e melodiosas como: "O Raminho de Flores"; "Primavera"; "Ribeira de São Romão"; "A flor que abriu em Maio"; entre outras, com peças de música clássica, onde não faltou a "Suite Alentejana nº. 2" de Luís de Freitas Branco, executadas pela saudosa Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional sob a regência de Pedro de Freitas Branco (nos bons tempos em que a hoje vistosa e rica RDP se dava ao luxo de manter também uma orquestra ligeira... que Deus lá tem, naturalmente na mesma campa) numa estranha mas feliz simbiose na sala do São Luís, onde o cheirinho a esteva, a poejo e a rosmaninho da estepe alentejana se confundia com os eflúvios dos sons suaves e pianos das sinfonias de Freitas Branco, Borodine e Francisco de Lacerda.
Isto aconteceu em 23 de Março de 1937, curiosamente o ano em que Salazar foi confrontado com um atentado à bomba quando ia à missa. Talvez por isso é que raramente passou a sair do Convento de São Bento.
E chorem de raiva, amigos, porque o bilhete de ingresso para um espetáculo desta categoria, custava ao tempo a fortuna de ... dez tostões.
(Sonhando alto, aqui vos digo que gostava de reeditar este espetáculo, mas a RDP não tem orquestra sinfónica... e o São Luís está arrendado a particulares).
Voltando à realidade, este encontro inesperado com os homens do cante ali pespegados naquela parede, tão familiares, teve o condão de me empurrar para trás, para a história do cantar alentejano, para um cenário longínquo, de triste memória para muitos portugueses, especialmente daqueles que não se recusavam a pensar.
Efetivamente e por que andei sempre metido nestas coisas das modas e cantigas da nossa terra (entre outras atividades culturais amadoras), nestas andanças de cantar alentejano a vários níveis, o filme começa a desbobinar-se no arquivo da memória, vindo "à baila" as vicissitudes por que passava a sociedade portuguesa e, por tabela, os grupos corais como expressão popular inigualável, por cantarem nas modas a miséria, da região e do País, as desigualdades sociais cada vez mais injustas (ontem como hoje) a exploração de quem trabalha e os maus tratos nos latifúndios, etc. Inclusive pondo em relevo a pouca vergonha de uma igreja que se dizia dos pobres e alinhava com a política de repressão do Estado Novo de Salazar e do seu partido único, com os poderosos e endinheirados da terra.
E, a melhor "cunha" para arranjar emprego no Estado ou livrar-se à tropa era a sotaina...
Este cenário era generalizado no País e no Alentejo, designadamente o Baixo, terra mais colorida, e politicamente alvo constante de suspeição para o regime ditatorial fascista onde os seus próceres e os apologéticos da situação, com as costas quentes pelas autoridades locais, numa conivência que o povo repudiava, agiam a seu bel-prazer, como se tivessem procuração com plenos poderes de São Bento e acólitos.
Com efeito também a igreja não escapava às alfinetadas, que, como nas críticas nos campos sociais e políticos, tinham de ser feitas nas entrelinhas, com a máxima cautela, tanto mais que Salazar e o supremo chefe do clero, o Cardeal Cerejeira, eram unha e carne, irmãos de seminário e massa do mesmo alguidar, e se um dizia mata o outro dizia esfola.
E Portugal continuou amordaçado durante muitos anos.
Vêm estas considerações a propósito daquela fotografia que lembra uma das muitas estórias que fazem a História do cante alentejano e ainda para rebater injustas aleivosias por parte de certos papagaios parladores em colóquios, sem um mínimo de conhecimento de causa, pretendendo que as nossas modas e cantigas nunca tiveram cariz contestatário, antes - do seu, curto, ponto de vista, - cantariam os amores não conseguidos e lamechiches corriqueiras, etc.
Tais afirmações, que já tive ocasião de debater em colóquio recentemente, são em meu entender, uma ofensa para os alentejanos que, por mais uma vez e no terreno para além do das cantigas, deram provas da sua contestação à ditadura salazarenta, sofrendo disso as consequências, num grau certamente superior aos de outras regiões do País, muito mais acomodatícias como se sabe.
E só pode ter tal opinião quem nunca andou pelos bastidores do cante do Alentejo, quem nunca cantou nem ensaiou grupos corais, nem jamais sentiu a mística do nosso cante, a alma que brota do nosso cantar, das vozes cheias e fortes dos homens que, de braço dado numa expressão de unidade ou a mão sobre o ombro do dianteiro, determinado no antes quebrar que torcer.
Mais adiante e após tecer alguns comentários sobre o assunto, situando a vida dos grupos corais na época politica em que viveram, gerações com problemas bem distintos, terei ocasião de transcrever algumas quadras do cancioneiro alentejano, todas elas contendo cautelosas expressões de protesto, quando era perigoso e temerário fazê-lo. Nelas veremos alusões nas vertentes politica, social e religiosa.
Primeiro convém lembrar que este País esteve culturalmente às escuras durante quase meio século, tanto foi o regime cerceador das liberdades públicas, censura férrea a alguns meios de Comunicação Social adversos à ditadura, proibindo a publicação de livros a autores que sofriam perseguições, prisões e torturas nas masmorras da Pide, com uma grande rede de "bufos" informadores de tudo o que escutavam e transmitiam a troco de dez reis de mel coado, por vezes, por vinganças pessoais inventavam, ganhando assim a dois carrinhos; alguma exceção servirá para confirmar a regra.
A sanha policial, qual polvo, estendia os seus tentáculos a tudo o que cheirasse a cultura, não escapando canções, músicas alegóricas a acontecimentos mundiais de protesto e estreita vigilância sobre os autores e intérpretes, muitos dos quais só depois do 25 de Abril conseguiram ver as suas obras na rua. Ante este cenário apetece perguntar por que carga de água os grupos corais alentejanos seriam exceção, sendo ainda por cima oriundos duma região que estava na lista negra da ditadura? Sujeito às mesmas regras do jogo todo o trabalho dos grupos era feito dentro das maiores precauções como é óbvio. Negar esta evidência só por má-fé.
É fácil protestar em regime democrático em que os cobardes, os medíocres e até os cagarolas o fazem, e sabem escoicinhar. Situar portanto o 25 de Abril como o início da contestação no cante alentejano é estultícia em que não embarcamos. Ele contribuiu, sim, com abertura das torneiras da liberdade, para aparecimento de uma enorme avalanche de protestos de todos os quadrantes há muito recalcados e entre eles também os grupos corais alentejanos atiraram para longe a mordaça da opressão. O que aconteceu foi que, com o 25 de Abril, o Alentejo emergiu através das suas canções, das suas modas, que passaram a ecoar mais longe, ouvidas com mais respeito e dignidade. Parecia o menino bonito do que se convencionou chamar a "revolução dos cravos". Até os que não eram alentejanos de gema se esforçaram, solidários, para cantar connosco como melhor podiam, juntando-se entusiasticamente aqueles que o faziam com o carimbo de origem e que por isso soube compreender estes momentos de solidariedade.
Diferente, muito diferente, é contestar algo num regime de ditadura, repressivo de todas as manifestações públicas não organizadas pelo regime. Algumas vezes assisti à chegada inesperada de um guarda em locais onde mal começávamos a cantar, por vezes perguntando a nós próprios como adivinharam...
Ontem, como ainda hoje, os grupos corais faziam das coletividades de cultura e recreio o seu quartel-general; e estas coletividades, por se tratar de locais de fácil reunião entre sócios, eram constantemente vigiadas pois Salazar entendia que poderiam ser focos de conspiração. Até os tais "bufos" se infiltravam, e de tal maneira se tornavam prestáveis, que chegavam a participar nos corpos gerentes, sem que alguém desconfiasse. Só depois do 25 de Abril muitos foram desmascarados.
Por outro lado, Códigos de Posturas Municipais, revisionados pelos Governos Civis que ao tempo, como hoje, eram funcionários do Governo, proibiam que se cantasse à Alentejana depois das nove horas da noite. Ainda hoje, algumas autoridades, a pretexto da ordem pública, utilizam esta anacrónica e reacionária disposição "legal" numa altura em que as famosíssimas e modernas discotecas, com todo o seu cotejo de barulhos, bebedeiras múltiplas, distúrbios, ambientes de violência e até crimes (como há bem pouco tempo aconteceu no Norte, como estamos lembrados) podem estar abertas até de madrugada.
Comparar estes ambientes e outros semelhantes com as mesmas regalias com a pacatez e a harmonia dos grupos corais alentejanos, não é coisa deste mundo, certamente.
Como prometi vejamos as quadras que respigámos do cancioneiro alentejano compiladas pelo ilustre alentejanista: o Prof. Vítor Santos, que foi Presidente da Direção da Casa do Alentejo:
Neste miserável mundo                            Eu já não tenho alegria
Não se ouvem senão prantos                   Vivo no mundo sem gosto
A desgraça é só uma                                  Nasce o Sol torna a nascer
Os desgraçados são tantos ...                    P'ra mim é sempre Sol posto

Vai para longe a desgraça             Este mundo em que vivemos
Quando estamos a cantar              É um mundo de ilusão
Que o próprio tempo que passa  Só se respeita quem tem
Nem o sentimos passar                 Oiro, dinheiro e brasão

Tu és rico e eu sou pobre              Mais vale um ganhão
Tu vives no esplendor                   Roto e sem camisa
Eu trabalho e tu passeias               Que trinta lirós
Qual de nós tem mais valor?        De marrafa lisa...

Nas próprias Janeiras, cantadas à porta dos mais abastados sente-se o protesto surdo de quem, ano após ano, não passa da cepa torta:
Nam venho cá por boletas             Daqui donde estou bem vejo
Qu'est' ano nam nas houve           Um canivete a balhari
Venho cá por uma chóriça             P'ra cortar a chóriça
P'ra amanhém dêtar na couve      Q'a senhora m'há-de dar.

A igreja dominante, face à sua prática no terreno, contrariando toda a essência da doutrina de Cristo, também recebia as suas estocadas:
Não há flor como o cravo              A senhora lá do monte
Nem lenha como o azinho             Tem um moinho na mão
Nem filhos como os de padre      Para moer as mentiras
Que aos pais chamam padrinho  Das beatas que lá vão

E poderíamos citar muitas mais. Fiquemos por aqui, lembrando que se atentarmos por momentos na época da censura e perseguição politica em que tais modas corriam é mais que contestação. É, sobretudo, coragem dos Alentejanos."

José Pereira Júnior

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