TRATADO DO CANTE:
Congresso
do Cante Alentejano
Beja,
8 e 9 de Novembro de 1997
PAINEL
C PERSPECTIVAS FUTURAS DO CANTE
Francisco
Caipirra da Associação do cante alentejano “Os Ganhões” de Castro verde.
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Boa tarde a todos. Tenho a consciência que o que vou dizer nesta comunicação é
polémico e poderá de alguma forma ferir algumas susceptibilidades
principalmente daqueles que olham o cante e recordam com alguma nostalgia
outros tempos em que a sociedade alentejana era mais solidária. No entanto,
perante o estado em que o cante se encontra justifica sermos um pouco radicais
e até bem irreverentes. As mudanças só se fazem, fazendo-as efectivamente. Em
primeiro lugar, uma constatação, os poderes não se encontram neste Congresso,
os poderes esses que tanto gostam do cante e tanto gostam da cultura e utilizam
essa bandeira quando muito bem necessitam dela. Em primeiro lugar eu gostava de
dar os meus parabéns à Casa do Alentejo em Lisboa pelo facto de ter levado a
cabo a realização deste primeiro Congresso do cante. É uma iniciativa louvável
que irá certamente credibilizar o cante e valorizar o papel de alguns milhares
de homens e mulheres que neste momento dão corpo e alma aos nossos grupos
corais. Digo isto do fundo do meu coração sem quaisquer preconceitos, pese
embora sempre tenha defendido que nestas como noutras questões que nos dizem
respeito, o protagonismo terá que emergir de dentro das fronteiras da pátria
alentejana. Só que nesta como noutras questões, somos pouco protagonistas.
Trata-se obviamente de um comportamento pouco convincente em que todos nós
deveríamos meditar principalmente os poderes regionais, aqueles que nos
representam e em quem nós entregámos a nobre tarefa de decidir. É que para
sairmos do rabo da Europa, não basta apregoar aos sete ventos que é necessário
que nos liguem e que invistam em nós. É acima de tudo necessário nós próprios
não menosprezarmos o nosso maior património, aquilo que mais nos identifica
como povo e como pátria, a forma pouco digna como o cante tem sido tratado nos
últimos anos olhado como peça de museu e muito pouco como uma realidade que
envolve mais de uma centena de grupos no nosso país, exige de todos nós que
alteremos as regras do jogo e definitivamente lutemos para que ele não saia do
seu habitat natural ou seja da mente e do comportamento do povo. Fernando
Lopes-Graça definiu com algum rigor a verdadeira paixão dos alentejanos pelo
cante. Vamos então recordar. “Esta gente canta com verdadeira paixão e todas as
ocasiões são boas para dar largas ao seu lirismo ingénuo. Não há trabalho,
folga ou reunião de qualquer espécie sem um rosário infinito de cantigas. A
alma do alentejano é profundamente musical e o cante é o elo vital que liga
aqueles seres primitivos no sentimento de uma comunidade telúrica. Em qualquer
parte o alentejano se reconhece e identifica reconhecendo e identificando em
mesmo passo os seus irmãos em carne e em espírito mediante o viático das suas
canções. Por vezes fico deveras assustado. Oiço muitos intelectuais e outros
pensadores elogiar de forma exagerada aquilo que se passa além-fronteiras, em
especial na Córsega, na França e na Irlanda. Até quase nos fazem crer que é
nesses países que melhor se defendem as raízes tradicionais mormente a sua polifonia
popular. Esses senhores talvez não saibam que essas raízes estão a sair do seio
do povo. Cada vez mais esse comportamento está a fechar-se dentro das quatro
paredes da Universidade. É verdade! O que para aí vemos e ouvimos são grupos de
estudantes universitários que se organizam e dão corpo aos inúmeros grupos de
música étnica que calcorreiam esse mundo fora. E aqui é que reside a grande
questão. Todos temos que lutar para que essa situação não aconteça na pátria
alentejana. No Alentejo se o povo é que tem até agora cantado, então o povo é
que deverá continuar a cantar. Neste tipo de comportamento devemos dispensar
representantes. Este é o que orgulhosamente chamamos o cante da terra. Quando
se deixar de cantar nas vilas e aldeias do Alentejo então o cante passará a ser
canto, os grupos serão coros, os homens e mulheres serão artistas, o povo
deixará de ter pátria serão pessoas iguais a todas as outras só diferentes pela
língua ou pela cor da sua pele.” (Será fim de citação?) O ano de 1997 tem sido
o ano da graça do cante. Desde os anos 50 que não assistíamos a tanta
manifestação, tendente a valorizar e credibilizar o cante. O tempo do prato do
feijão está a ficar nublado e a meter água por todos os lados. Aproxima-se
outro tempo muito mais aberto com o sol a espreitar a planície. Chegou a hora
de todos juntos encontrarmos as melhores soluções para que o cante continue
vivo e se mantenha no coração dos alentejanos. Um dos maiores entraves à
renovação dos nossos grupos corais é o enorme fosso cultural e de mentalidades
que existe entre os homens e mulheres que os constituem e a juventude. Por
isso, é errado continuar a acusar os jovens de desinteresse. Os tempos são
outros, as motivações dos jovens são diferentes. E nós estamos aqui desde manhã
a falarmos das mesmas coisas, a acusar praticamente os jovens de manifestarem
algum desinteresse pelo cante como nós próprios não fazemos nada para que essas
coisas aconteçam e estamos muito no nosso pedestal à espera que os jovens
venham ter connosco onde devemos ser nós a ter que ir ao pé deles. O que mais
motivava o cante era o trabalho agrícola, o entretenimento ao fim da tarde nos
largos e nas praças. Hoje o Alentejo já não é uma pátria agrícola. A sociedade
alentejana tem vindo a desenvolver outro tipo de motivações. O cante tem que
ser dinâmico, tem que acompanhar os velhos tempos, tem que ter poesia actual,
tem que falar nos tempos que correm, e ocupar novos espaços. Um pouco nesta
linha de pensamento, venho defendendo que é urgente retirar o cante da pré-história
e situá-lo na História. Com isto não quero dizer que temos que renegar o nosso
passado. Nada disso! O que pretendo transmitir é que se a sociedade evolui, se
o pensamento também evolui, então o cante não pode ficar estagnado. Mesmo na
componente etnográfica, o cante também tem que evoluir. Não podemos continuar
agarrados à samarra e aos safões, ao chapéu de aba direita e às botas
caneleiras. O aparecimento de um grupo hoje não deverá ter esses preconceitos.
Hoje o homem e a mulher alentejana já não se vestem com esse tipo de vestuário.
Não quero com isto dizer que os grupos não possam continuar a utilizar trajos
antigos. Quero simplesmente dizer é que veria com bastante naturalidade o
aparecimento de um grupo com um traje actual sem chapéu e com sapatos, com
jeans e tea-shirts . As nossas mondadeiras hoje já não usam as saias até aos
tornozelos, bem pelo contrário, vestem-se com uma mini-saia atrevida. Só quem
defende que o cante é um comportamento folclórico é que rejeita esta evolução.
Existem diferenças substanciais entre o folclore do norte do país e o cante do
sul. No norte, só se dança para o turista ver. No sul, o cante brota da alma do
povo. Noutros tempos a juventude estava em casa e no campo. Hoje está na
escola. A família nos dias que correm é uma estrutura cada vez menos influente
na formação e orientação dos jovens. Cada vez mais a escola substitui a
família. E eu diria também, cada vez se fala menos em casa. É com este novo
contexto social que deveremos construir o futuro. E falemos então do futuro. Na
realidade, este Congresso devia ser conclusivo no que se refere à criação de
uma estrutura que possa daqui para o futuro ter um papel de apoio aos grupos
corais e em simultâneo desenvolva um conjunto de actividades que visem a
preservação e dignificação do cante, não só deste. Penso que essa estrutura
deveria também preocupar-se com outras formas de cantar como seja o despique e
baldão e a viola campaniça. Associado a tudo isto, deveria também ter um papel
fundamental no estudo dos usos e costumes e sua preservação. Poderão existir
dois caminhos para se concretizarem estes objectivos. E até aqui há um caminho
que ainda não foi falado e eu tenho pena que o Dr. Henrique Pinheiro aqui não
esteja. Um considero-o indispensável, seria a criação de um Departamento dentro
do Conservatório de Música do Baixo Alentejo que visasse a formação e
sensibilização dos alunos em relação ao cante. É no Conservatório que se formam
os professores e o actual contexto estes têm um papel fundamental a
desempenhar. Estamos a falar em professores de música. Os professores que saem
do Conservatório deviam ter um conhecimento profundo de cante e de outras
formas de cantar do Alentejo. Não podemos permitir nas escolas desta pátria
ainda se continue a ensinar a “loja do mestre André” e se omita ou se
desconheça “Ó rama, ó que linda rama”. E isto é o que acontece e continuamos a
falar das ceifeiras do passado e dos pastores do passado. E queremos que a
juventude venha para os grupos vestidos de pastores e vestidos de ceifeiras. A realidade
do Alentejo é outra. Temos que começar nestas pequenas coisas. Outro caminho
seria a criação do Instituto das Tradições com personalidade jurídica e com
sede na cidade de Beja. Eu estou a falar no Instituto das Tradições, não estou
a falar numa Federação de Folclore. O Alentejo não merece uma Federação de
Folclore. O Alentejo merece um Instituto das Tradições, um Instituto de
Cultura, qualquer coisa assim parecida. Como eu disse há pouco, aqui não se
canta para os turistas, canta-se porque o cante brota da alma do povo. Era uma
estrutura que fosse o polo aglutinador, coordenador, dinamizador e um trabalho
sistemático e científico em relação ao cante e aos usos e costumes da pátria
alentejana. Esse organismo deveria ser constituído essencialmente por Grupos
Corais, evidentemente, mas também por esse organismo ou associações às quais se
reconheça legitimidade. Por exemplo, autarquias locais, passou por aqui muito
pouca gente, associações de Municípios, não vi ninguém, regiões de Turismo,
Conservatório de Música, representações do ensino aos vários níveis para
integrar este ensino nos projectos de área-escola como foi muito bem dito,
pessoas individuais de comprovado prestígio intelectual. Este é um conjunto,
são medidas práticas que o Congresso deveria determinar. E não pode ficar a
ideia que para se implementar este tipo de estruturas que é complicado ou que
demora muito tempo. Como eu disse no início, só há uma forma de se fazerem as
coisas, é fazendo-as efectivamente.
Muito
boa tarde a todos.
Francisco
Caipirra
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