TRATADO DO CANTE:
Congresso do Cante Alentejano
Beja, 8 e 9 de Novembro de 1997

PAINEL C           PERSPECTIVAS FUTURAS DO CANTE
 
Comunicação do dr. António Lacerda, do pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Alcácer do Sal:
- Muito boa tarde. Antes de mais, muito obrigado pelo convite que a organização deste Encontro teve a gentileza de me dirigir e eu sinto-me pequeno e modesto perante gente que anda há muito mais tempo nestas lides do cante e que percebe muito mais disto do que eu. De qualquer das formas como penso que é importante o contributo ou seja de todos nós, cá estou. Eu vou-vos pedir desculpa também porque a minha comunicação vai ser extremamente telegráfica, vai ser extremamente breve, mas tenho um outro compromisso em Setúbal às cinco e meia e portanto como vêem estou muito atrapalhado de tempo. E agora, telegraficamente, alguns recados, algumas ideias. Falar do percurso passado ou do percurso presente ou até mesmo perspectivar o futuro do cante é fundamentalmente o mesmo que estar a discutir a questão do mundo rural. São duas matérias que estão intimamente associadas e que dificilmente se compreenderão sem uma abordagem global. O cante existe num mundo rural e porque o mundo rural existe. E é de facto um trabalho, é uma forma de exprimir, é uma arte que tem a sua essência bem enraizada na ruralidade. Se hoje o mundo rural está ameaçado, também o cante o está. Políticas excessivamente descentralizadoras e centralizantes que têm vindo a ser desenvolvidas, têm contribuído de uma forma assustadora para o esvaziamento do mundo rural, para o esvaziamento não só demográfico mas fundamentalmente pelo esvaziamento cultural. Não podemos defender o mundo rural contra essas medidas excessivamente centralistas, se não tivermos consciência da sua essência e do seu contributo na construção da nossa sociedade e na importância que tem na manutenção daquilo que somos. Um povo que não se reconhece no seu percurso do passado, que não se reconhece no seu presente, não é povo. E, se me permitem, enveredando um pouco mais sobre esta duplicidade que existe entre o mundo rural e o mundo urbano, eu acho que hoje já nos podemos confrontar com a desestabilização que nos foi provocada no mundo rural que se prolonga já e que vive e existe com maior premência no mundo urbano. Não se acautelou o futuro da ruralidade, não se acautelou o futuro do campo, empurraram-se duma forma mais ou menos ardilosa e sedutora as pessoas para as realidades mais urbanas, para os polos de desenvolvimento industrial, e a desagregação do mundo rural acabou também por provocar a desagregação do mundo urbano e hoje não se vive bem na área metropolitana, não se vive bem na periferia das cidades. Se calhar, a qualidade de vida mantém-se de facto, onde sempre esteve, no campo. Com este abandono das pessoas que foi imposto por medidas de fomento populacional ou desenvolvimento económico pouco acertadas, e com a sua falência, o Alentejo sobretudo, viu-se despido progressivamente de um contingente muito significativo de pessoas. E ao mesmo tempo, essas pessoas após a saída e quando tinham momentos de retorno e de contacto com a sua comunidade de origem, traziam com eles novas formas de expressão cultural que de alguma forma enjeitavam a cultura do lugar. Ao enjeitarem a cultura do lugar, e aqui no Alentejo em concreto uma das suas marcas mais dominantes que é o cante, estavam a recusar um pouco da sua própria identidade. Há a imperiosa necessidade de inverter esses termos, há a imperiosa necessidade de reafirmar o local enquanto um espaço complexo de relações interpessoais, um espaço onde a produção cultural de facto acontece, por antítese àquilo que se passa no mundo urbano onde a cultura, esta cultura, não se produz, onde a cultura é sobretudo um acto de consumismo e não de produção. Essa é a reafirmação do mundo rural e hoje notamos com bom agrado que há um retorno à origem, que há um voltar atrás e que se procura outra vez o cante, a cultura do Alentejo como símbolo da qualidade e dum determinado estatuto de vida. Não será por acaso que algumas elites do ponto de vista cultural redescobrem o cante agora e o levam a conhecer uma nova vida e uma nova pujança. É bom que isso aconteça. É de facto um retorno, é a reafirmação dessa identidade. Pena é que, ao longo de todas estas décadas, muito se tenha perdido, e como dizia o Manuel da Fonseca, pouco antes de falecer, Portugal a sua melhor discoteca e a sua melhor biblioteca enterrada nos cemitérios porque quando morreram os protagonistas principais na construção desta forma, levaram com eles todo um saber que agora não podem partilhar com ninguém. E não fosse de facto a intervenção de privados, de gente com alguns esclarecimentos, de gente que correu este país de lés a lés e que foi recriando uma memória ou foi registando tudo aquilo que de bom tínhamos, e não vale a pena citarmos muitos nomes, basta falar de Giacometti, de José Alberto Sardinha, de Fernando Lopes-Graça, ou Armando Leça, foram homens que de facto contribuíram para que ainda tenhamos testemunhos não vivenciais, testemunhos documentais para consultar e para percebermos a nossa tradição e a nossa cultura. Pena é que na maior parte dos casos, o espólio valiosíssimo que nos legaram continue em depósito não tratado e sobretudo não divulgado. O espólio de Armando Leça está na RDP, não sei se algum dia sairá à rua, o espólio do Giacometti continua engavetado, e tantas peças importantes que contém, e portanto, é pela ausência de uma política cultural que se contrapõe a este excesso de centralismo que nós temos que pugnar. Essa ausência marca-nos, essa ausência vitima-nos e nós temos que reafirmar a sua necessidade e contribuir para a sua construção. Não pode, no entanto, ser uma obrigação de privados. Podemos ser nós individualmente que iremos construir essa nova dimensão. Tem que ser uma obrigação do Estado nos múltiplos organismos que o compõem, do Estado, poder central, ao Estado local, ao poder local, ou, quando vier a ser criado, ao Estado regional. E neste contexto específico do Alentejo, num contexto de uma região que tem uma identidade própria, que tem formas de produção cultural que são suas, toda esta matéria ganha uma especial pertinência. É de facto uma responsabilidade colectiva e como tal, ao Estado compete, recolher, guardar, divulgar e potenciar este nosso tesouro que é fundamentalmente a afirmação da nossa cultura, a afirmação daquilo que nós somos. Como o vamos fazer? Há muitas ideias que se podem lançar. Este Congresso é um marco. A reedição de alguns materiais que estão perdidos é outro. A recolha, enquanto ainda é possível, é outro, e sobretudo fazer com que, ao nível das camadas mais jovens, compreendam a essência e a forma deste tipo de produção cultural. Que nas escolas do Alentejo se contextualizem os currículos escolares e que não se estudem apenas matérias que a todos de Norte a Sul dizem respeito mas também as matérias que ao Alentejo respeitam de que a esta região fazem parte. Não seria demais pensar que um dia o cante fosse matéria de estudo nas escolas, pelo menos fosse partilhado com os alunos como se partilha a História mais antiga, a presença dos romanos ou dos árabes neste território. Vamos também partilhar o tempo mais recente. Vamos partilhar o tempo em que se cantava que também os contextos locais levavam que assim fosse. Vamos afirmar esta cultura por antítese e por complemento às outras culturas. Não vamos esquecer as culturas mais eruditas ou mais urbanas, mas também não vamos esquecer esta. Não vamos querer formar só rurais, rurais na dimensão cultural do termo. Vamos é municiar estes rurais, vamos municiar estes alentejanos para que, não esquecendo a sua origem e a sua cultura, possam entender de forma crítica todas as outras culturas que lhe quiserem impor pela frente, venham embrulhadas em papel celofane como a da televisão, nos jornais ou nos concertos ou espectáculos de carácter muito populista. E somos de facto um povo com riquezas, com diversidades, com especificidades e se isto é verdade no país, mais verdade é no Alentejo. Muito obrigado e peço desculpa de ser tão breve e aquilo que eu trazia era um pouco mais.
Muito obrigado."
Dr. António Lacerda

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