TRATADO DO CANTE:
Congresso do Cante Alentejano
Beja, 8 e 9 de Novembro de 1997

PAINEL D:         VALORIZAÇO DO CANTE ALENTEJANO
-         Ensino e Etnografia
Ora bom dia a todos. Preparei algumas linhas para trazer ao Congresso precisamente no sentido da organização. E subordino-as ao tema:
“CANTE - Organizar para Fortalecer”
 
O nosso cantar tradicional cuja valia presente e futura parece ser inquestionável, provém de uma época marcada por uma envolvência social, económica e cultural bem diversa da realidade actual. Podemos dizer que as vivências que enformaram o seu estilo ditaram a sua poesia e vincaram as suas sonoridades há muito que deixaram de fazer parte do nosso quotidiano. Desde então o cante perdeu a sua função real, desprendeu-se da sua ligação à vida, é agora uma projecção virtual da nossa memória colectiva. Por isso a moda não é mais o espelho reflector do sentir corrente. E assim, permanecerá incólume ao passar do tempo, encerrando como um sacrário os elementos agregadores da nossa identidade, a mística da nossa paixão por esta terra. Sem receber a seiva do labor e tendo quase perdido a sua utilidade no ócio, o cante ainda perdura como manifestação cultural entre a nossa gente, graças à persistência estóica dos grupos corais que, indiferentes às contrariedades e sem ligar às fraquezas, mantém viva essa forma sublime de expressão. De facto, do nosso ponto de vista, são os actuais cento e dois corais os grandes intérpretes da moda e os guardiões efectivos da nossa tradição vocal, já que desapareceram os ambientes onde, de um modo natural e espontâneo desabrochavam e se expandiam os nossos cantares. Por conseguinte, devemos cuidar de olhar atenta e cautelosamente para essa realidade aparentemente ainda fulgurante mas intrinsecamente muito volátil e frágil. O acaso ou circunstâncias imponderáveis tem determinado o surgimento e o desaparecimento dos grupos corais sem que, salvo o cometimento interesseiro e pontual de instrumentalizações políticas tivessem logrado beneficiar de quaisquer intenções sistematizadas de apoio. Poderá dizer-se sem forçar a nota, que o seu cantar tem sido de autêntica resistência porque só assim a generosidade é tanta e o sacrifício que lhes é exigido é suportável. Padecem por mil queixas, persistem pela vontade, insistem só pelo gosto de cantar, de deitar cá para fora os sons aprendidos às gerações, as vaias que se repetem e ainda nos trespassam com a mesma intensidade de ontem. Importa assim organizar para fortalecer esta corrente de lembrança, este movimento de cultura autêntica sem o que continuaremos carentes de afirmação falhos de meios distantes até da dignidade com que deviam ser tratados. Consideramos que se nos impõe colocar no horizonte dois objectivos tendentes a possibilitar a inversão do panorama actual no que respeita ao cante. Primeiro, iniciar um movimento de opinião que conduza à classificação do cante como património do Alentejo. Segundo, desenvolver subsequentemente um trabalho de afirmação junto das autarquias para que os grupos corais venham a ser reconhecidos como parceiros culturais privilegiados. De uma situação e de outra resultará a necessária dignificação do cante e dos seus intérpretes, conduzindo a que sobre eles se lance um olhar diferente abrindo por arrastamento a porta à captação dos mais novos para as nossas fileiras, já que a sua ausência é das razões maiores da nossa preocupação. Com os meios de que dispomos, e com a força que temos, não lograremos ir para além dos limites da continuidade. Importa que nos juntemos, que prossigamos de hora avante o diálogo e o debate iniciados neste Congresso, ganhando estrutura, arrebatando confiança, desenvolvendo a nossa capacidade organizativa. Consideramos que a fundação de uma Federação agregadora dos corais actuais e dos vindouros poderá encontrar resposta para os nossos anseios presentes e para as dificuldades futuras. Será um órgão de reinvindicação e de diálogo com os poderes. Será um meio de articularmos as nossas actividades, um elo a ligar as nossas iniciativas, um veículo de comunicação entre os grupos para quebrar o seu isolamento. Parece-nos, por conseguinte, que a vontade (?) do surgimento de uma Federação do cante alentejano é óbvia, mas também julgamos ser este o momento ideal para a sua constituição. Aliás, presentemente a esmagadora maioria dos grupos não está legalizada, não tem personalidade jurídica, e, por conseguinte, ficaria à partida arredada deste processo que todos pretenderão participar. Logo consideramos que na sequência da conclusão destes trabalhos que serão pela certa uma grande referência para a história do cante, os grupos corais deverão eleger um órgão representativo, um Secretariado que terá por função criar condições práticas materiais, jurídicas bastantes, para que ao cabo de um ano de actividade seja constituída a Federação do cante. Teremos então de pé a fortaleza onde podemos albergar os sonhos da nossa esperança num cante possível para além da distância dos quereres actuais. Contaremos então com a força criadora do pensar colectivo, com a invenção de caminhos para sairmos deste atasqueiro em que os grupos se atolam e donde s- poucos conseguem livrar-se. Ganhando novo fôlego, saberemos empreender novas metas de exigências e apostaremos com mais firmeza na autenticidade, no porte e até no brio essenciais a uma imagem mais condigna com a elevação que às vozes sabemos dar.

Muito obrigado.
Dr. José Francisco Colaço

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