TRATADO DO CANTE:
Congresso
do Cante Alentejano
Beja,
8 e 9 de Novembro de 1997
PAINEL D: VALORIZAÇO
DO CANTE ALENTEJANO
-
Ensino e Etnografia
Maria José Barriga. nasceu em Beja, cidade onde iniciou os
seus estudos musicais sob a orientação da professora Ernestina Pinheiro.
Prosseguiu os seus estudos de música na área do cravo, em música barroca com a
cravista Cremilde Rosado Fernandes e posteriormente na Holanda com o professor
Thom Cookman (?) onde terminou a licenciatura em docente de música. É
licenciada ainda em Línguas e Literaturas Modernas e presentemente mestranda em
etnomusicologia na Universidade Nova de Lisboa. Exerce funções de docente do
Conservatório Regional do Baixo Alentejo e na Escola Superior de Educação de
Beja.
Muito bom dia. Em
primeiro lugar queria agradecer o convite que me foi dirigido da parte da
realização do Congresso. A minha comunicação poderá ser interrogada em o porquê
de eu estar aqui. Talvez seja incluída como uma nota dissonante no meio deste
Congresso porque no fundo este Congresso foi-lhe dado o título de Congresso do
cante alentejano, mas eu aqui deixava talvez uma ideia, um repto de que em
posteriores organizações, em posteriores eventos se alargasse talvez o âmbito e
se fizesse talvez um Congresso ou um Simposium ou o quer que seja ou um evento,
alargando o tema ou à música tradicional no Alentejo, em que seja possível
abranger outras práticas musicais. E portanto é aqui que eu venho dar o meu
contributo. Não existem segundo há pouco foi falado um padrão de cultura o
cante alentejano. Pela realidade que eu tenho observado não é apenas o cante
alentejano a única prática musical que existe e que sempre existiu no Alentejo,
existiam outras formas, outros géneros e que realmente foram sempre colocados,
marginalizados quase. Isso talvez tenha havido dados históricos que têm estado
a ser estudos, o porquê de tal acontecer, mas realmente não existe apenas a
polifonia, o canto polifónico que é executado pelos grupos corais mas existem
as modas, os bailes lançados, as modas de bailes, existiam as modas campaniças
das zonas, existem não existiam só no passado, mas existem modas campaniças na
zona de Castro Verde, tal como existiam práticas e ainda estão a ser executadas
em Vila Verde de Ficalho que realmente nunca são focadas, tal como existiam as
modas de Carnaval de Selmes e da Amareleja, que estão neste momento a tentar
ser revitalizadas, como existiam os desafios por todo o lado e várias formas de
desafio, os cantes das gralhas, o canto do ladrão, o cante do baldão e
inclusivamente as décimas cantadas que neste momento é difícil encontrar mas
ainda é possível, décimas cantadas que portanto tinham uma componente musical.
E essa é a minha interrogação e foi daí que eu parti para os meus estudos e
para o meu interesse e para a minha motivação ao nível da investigação na
etnomusicologia, foi perguntar: “mas será que só existe o cante alentejano como
única forma?” Claro que ao fazermos uma pequena pesquisa e não é preciso ir
muito longe começamos a encontrar outras formas. E é nesse domínio que eu me
debruço, nesse domínio que eu venho dar aqui um pouco a minha tónica, não venho
falar do cante alentejano, venho falar de uma outra prática, do cante do baldão,
uma forma de cante ao desafio que está neste momento a ser praticada e com
muita força, com muito vigor, e que tem um relacionamento, uma articulação com
o cante alentejano com uma série de processos extremamente interessantes que é
necessário estudar, é necessário verificar, e que existem, não algo que
desapareceu, não é algo do passado ou não algo de marginalidade. O que nós nos
interrogamos é porque é que realmente há esta força tão grande do cante
alentejano e este poder que se tenta dar como única forma representante do
Baixo Alentejo, representante de todo o Alentejo, quando se fala no Alentejo e
se pretende introduzir um representante fala-se no cante alentejano. Talvez
neste momento os estudos apontam para que desde a política de António Ferro, a
política do espírito, foi talvez aí que tenha sido um dos elementos, um dos
factores históricos que mais contribuiu para que tal tenha acontecido ou
necessidade da parte da política da altura de mostrar que o povo alentejano,
apesar uma ditadura, que as pessoas em todo o Portugal eram alegres, estavam
felizes, estavam contentes e portanto era necessário mostrar isso quer para
fora quer internacionalmente quando vinha cá qualquer Chefe de Estado, quer
para qualquer evento mais oficial que existisse e portanto foi dado muita
importância ao chamado de folclore e foram, existiram uma série de práticas a
que foi dado uma grande relevância tal como no Algarve “O Corridinho”, “O
Bailinho da Madeira”, ou o “Vira”, e no Alentejo o “Cante Alentejano”. A partir
daí foi dado um relevo muito grande, foi focalizada toda a atenção e foi a
forma estereotipada que foi encontrada para mostrar o representante do Alentejo
a nível do cante da forma tradicional, da música tradicional, era o cante
alentejano. Mas realmente se nós tentarmos fazer uma pesquisa mais ou menos
científica, nós observamos no dia-a-dia que existiram, existem outras práticas
musicais e foi portanto como disse a partir daí que me interessei por
etnomusicologia, foi tentar ver que outras formas existem na minha área,
portanto, no Alentejo, e esta parte, portanto interessei-me principalmente,
comecei por uma determinada prática que foi o cante ao baldão, realmente é
necessário para qualquer estudo que se queira fazer tentar reduzir o campo de
estudo, não é possível repentinamente ou num ano ou em dois anos fazermos um
estudo sobre o Alentejo inteiro, é preciso realmente reduzir a unidade de
estudo e o campo, e eu comecei por esta prática do cante ao baldão que talvez
muitas pessoas conheçam, outras não, e que os dados analíticos que vou
apresentar nesta comunicação são parte de um trabalho de investigação a
decorrer desde Fevereiro de 1996 para uma tese de mestrado em etnomusicologia
sob a orientação da doutora Salwa Castelo-Branco da Universidade Nova de Lisboa.
Portanto trata-se de uma análise que está ainda em curso, portanto não tem
dados conclusivos, talvez nunca os terei, mas que prevê ter como resultado a
elaboração de uma etnografia musical em torno de uma prática musical
caracterizada por uma quase total ausência de documentação até ao presente
momento. Pretende-se com este estudo analisar o papel actualmente desempenhado
por esta prática formativa na construção, manutenção e revitalização de uma
identidade cultural local específica duma zona geográfica do Baixo Alentejo, “da
serra” que a música actua, como é que o cante ao baldão desempenha um papel
fundamental na identidade local, não estou a falar na identidade regional, na
identidade alentejana, estou a falar de uma identidade local entre dois tipos de
povoação, se é que se pode considerar assim, os da serra considerados os
serranos e os campaniços da Castro Verde. Portanto, o que é que o cante ao
baldão é? Começo por descrever. Apresenta-se como uma prática performativa que
se pratica numa área geográfica situada entre os concelhos de Ourique,
Almodôvar, Odemira e Castro Verde, no qual vários indivíduos intervenientes se
desafiam ou despicam, é o termo mais frequente muito utilizado pelos
cantadores. O cante ao baldão é considerado como uma forma de canto a despique,
um despique mais balda, foi um dos termos utilizados por um dos meus
entrevistados, e que, dizem eles, apareceu na zona geográfica de S. Martinho
das Amoreiras. Corte Malhão e Aldeia das Amoreiras. Segundo as informações dos
meus entrevistados, o cante a despique era a forma de cante ao desafio que mais
frequentemente se praticava até aos anos quarenta, cinquenta deste século XX,
não só nos concelhos de Odemira, Ourique, Almodôvar e Castro Verde, mas também
nos de Ferreira do Alentejo, Cuba, Vidigueira e Portel. O canto ao baldão
portanto surgiu, eles pelo menos até à data situam-no como tendo surgido após
os anos quarenta. Como é que eu posso descrevê-lo? É constituído por duas
componentes: a componente musical e a componente verbal. A componente musical,
designada pelos cantadores como estilo, corresponde a um modelo fixo, um padrão
rítmico-melódico que é sempre igual e repetido ao longo das várias cantigas.
Nas execuções actuais do cante ao baldão o padrão utilizado é o de uma moda
campaniça, a moda “Marianita és baixinha” que portanto a moda donde vem, donde
parte esta componente musical é uma moda muito cantada na área de Castro Verde,
Ourique “Marianita és baixinha/ arroja a saia pela lama/ tenho-te dito mil
vezes/ e levanta a saia - Mariana/ levanta a saia Mariana/ e não a deixes
arrojar/que a saia custa dinheiro / i o dinheiro custa a ganhar”. Portanto esta
é a moda que existia e existe, não há dados históricos mas é uma moda muito
antiga e que aproveita a música, a componente musical. Desta componente
musical, portanto nós chamamos-lhe melódico-rítmica desta moda, para
improvisarem novas cantigas. Os cantadores das Amoreiras e Corte Malhão referem
que antigamente os pais deles cantavam não s- no estilo da “Marianita és
baixinha” mas também noutros estilos que foram abandonados com o tempo e que
hoje em dia nenhum dos cantadores consegue cantar nem os próprios tocadores de
viola campaniça tocar. Através do cantador António José Bernardo, consegui
algumas referências sobre esses estilos. Falou-me no “Passarinho” e na
“Margarida Brejeira”, seriam outros dos estilos, outras das componentes
musicais utilizadas. A componente verbal ou cantiga traduz-se por um enunciado
improvisado e que deverá obedecer a certas regras de construção poética. Estas
regras são aprendidas e deverão ser praticadas pelo indivíduo que se queira
tornar um bom cantador. Contudo, todos os cantadores que entrevistei consideram
que o cante ao baldão é um canto que exige dotes naturais. Não é constituído
apenas por regras aprendidas que por esse motivo nem todos os indivíduos podem
ser cantadores. Para o cante ao baldão é uma forma de falar cantando e poder
comunicar, criticar-se, debater qualquer assunto apenas com uma regra: tudo o
que se disser tem de ser a cantar. E segundo eles dizem, isto são frases
tiradas de entrevistas minhas, o que dá gozo é falar cantando durante horas a
fio. Em relação aos temas, aos assuntos do cante ao baldão são referidos dois
tipos: por um lado a discussão de um afundamento, expressão que significa dar
uma opinião acerca de um assunto, que é colocado por um cantador e como
exemplos eles referiram com frequência que debatem o tema sobre as diferenças
entre a serra e o campo, entre os homens da serra e do campo, ou as diferenças
de valor do ouro e do ferro. Portanto, isto é um tipo de tema. Outro tipo é o
fazer cantigas uns aos outros. Portanto esta é a expressão utilizada “Fazer
cantigas uns aos outros”. É um tipo de tema que implica uma crítica recíproca.
Neste tipo de cantigas há duas espécies de situações, no mesmo cante haver
vários diálogos que se cruzam, portanto o indivíduo x critica o indivíduo y e
este defende-se e noutro sector, um indivíduo z critica o outro e esse
defende-se, noutros casos, realizam-se verdadeiros duelos em que se formam
grupos a favor e contra aquele que está a ser criticado. Aquele que é criticado
deverá sempre responder ao outro quando chegar a sua vez. Nestas cantigas não é
fácil para um público exterior aos acontecimentos e ao contexto social dos
cantadores conseguir acompanhar e apreender os temas em discussão. No cante ao
baldão alguns dos elementos são considerados obrigatórios ao desempenho do
cante. Por exemplo, os cantadores é um dos elementos que deverá existir. Se não
houver cantadores não poderá haver cante. Mas existem outros elementos
facultativos, por exemplo os tocadores de viola campaniça e do público presente
nos locais de desempenho. Os cantadores referem que o acompanhamento à viola
campaniça no cante ao baldão não é nem nunca foi elemento indispensável. Eles
podem cantar mesmo sem acompanhamento. Contudo preferem cantar com um bom
tocador a acompanhá-los. Um outro elemento que se constata e se observa quando
vamos assistir a um destes eventos é o da competição em termos de competência
musical entre os indivíduos participantes. Os indivíduos têm que dominar as
regras deste género e em simultâneo criticar algum aspecto ou facto da vida dos
outros indivíduos ou seja despicar os outros. Um bom cantador possui um forte
prestígio social. Mas para se conseguir ser um bom cantador, têm que se Ter uma
boa fala, o que significa uma voz afinada e com bom volume, o saber cantar no
estilo que significa cantar a música da base do baldão, portanto saber a
componente melódico-rítmica, e saber fazer as cantigas. O saber fazer as
cantigas é saber construir o texto poético. Portanto, sempre houve, em todos os
eventos podemos observar uns cantadores que são considerados os bons porque
conseguem dominar estes três aspectos e esses conseguem um forte prestígio e
são exemplos de imitação. Muitos dos outros pretendem imitá-los para
conseguirem ser bons cantadores porque um bom cantador, vários referem isso,
eram sempre convidados para todas as festas, para os casamentos, para as festas
das aldeias e tinham muitos amigos. Vários cantadores me referiram que o Senhor
Alagoa era um senhor que tinha milhares de amigos porque sabia fazer as
cantigas, porque era um bom cantador e portanto levava fins de semana, levava
três e quatro dias em festas e era convidado para fazer as festas da zona.
Factores importantes e determinantes deste género são o local e o ambiente que
proporcionam o seu desempenho. Os locais mais frequentes destes cantos são as
adegas ou seja, um ambiente envolve por um lado a bebida, petiscos, e por outro
lado, um número de pessoas reduzido cinco ou sete cantadores e algumas pessoas
a assistir. Outros locais de desempenho são casas particulares em contextos de
festas privadas, pagamento de promessas, casamentos, baptizados das famílias
dos cantadores e ainda nas feiras: a feira de Castro Verde, a feira de Casével,
a feira de Garvão, a feira de Santana da Serra, ou romarias: a de S. Pedro da
Cola, por exemplo é dos locais quase histórico, se podemos considerá-lo “histórico”
destes eventos. Em qualquer destes locais, a disposição dos cantadores é sempre
idêntica. Eles estão sentados à volta de uma mesa e enquanto cantam bebem e
comem. Os tocadores de viola campaniça que acompanham o cante são dispostos num
lugar da mesa apropriado de modo a que todos os cantadores consigam ouvir a
viola. Ao assistir-se a um cante ao baldão, portanto são estes aspectos acima
descritos que numa primeira observação se podem constatar como relevantes desta
prática performativa. Agora a partir desta observação e desta descrição
etnográfica eu comecei a constatar e a tentar analisar o que é que se passava
para além de tudo isto, para além do que se observa numa primeira abordagem em
contacto com esta gente. Dos contactos mantidos com cantadores surgiu um
elemento inesperado e que desencadeou a motivação para este trabalho de
investigação: a hipótese de se estar a observar nos últimos anos um processo de
revitalização de determinados aspectos contextualizados no cante ao baldão. E
eu explico porquê. Em primeiro lugar, a existência de um número de cantadores
muito superior ao que havia à cerca de 10 anos. O número de cantadores tem
vindo a aumentar. E aumenta quase de acontecimento para acontecimento. Em
segundo lugar, o número de encontros de Baldão. Dos eventos em si, ser cada vez
maior de ano para ano. Em terceiro lugar, as modificações na forma de
apresentação do cante e dos cantadores. Em relação a estas mudanças os
informantes aludem ao papel desempenhado por um programa de rádio local, Rádio
Castrense, e ao “Programa Património”, inclusivamente, especificamente ao seu
produtor José Francisco Colaço Guerreiro. O Programa Património é um programa
de rádio iniciado há dez por José Francisco Colaço Guerreiro e tem por fim a
preservação da tradição e da identidade cultural alentejana segundo me foi referido
na entrevista. Trata-se de um programa em directo, constituído essencialmente
por telefonemas de pessoas e pela presença em estúdio de indivíduos ou grupos
que são entrevistados, que cantam ou recitam poesia e quadras. O programa é por
vezes transmitido fora do estúdio quando é convidado a gravar algum espectáculo
especial como é o caso de Encontros de Baldão. No Programa Património surgem
participantes por via telefónica dos vários concelhos do distrito de Beja. E
entrevistas informais que realizei a pessoas em Peroguarda, Vidigueira, Cuba,
Aldeia das Amoreiras e Conceição, surgiam sempre referências a este programa.
Em relação ao cante ao baldão especificamente a influência deste programa
parece relevante. Em primeiro lugar o Programa Património tornou-se uma fonte
de diálogo entre os cantadores. Um telefona e canta uma cantiga a outro, mais
tarde o outro telefona a responder. Em segundo lugar o programa começou a
organizar algumas destas ocasiões de desempenho, mas introduziu um termo novo
para as nominar chamou-lhes “Encontros de Baldão”. E este termo existe neste
momento a par de um termo utilizado pelos cantadores “O cante ao baldão”. Em
terceiro lugar, o número de ocasiões de desempenho, portanto o número de
acontecimentos dos eventos aumentou pois para além daqueles promovidos pelo
Programa Património as associações das aldeias, as Juntas de Freguesia e a
Câmara Municipal de Castro Verde e até cafés particulares começaram também a
organizar os seus encontros de baldão. Em quarto ponto, o número de cantadores
tem vindo a aumentar. E donde é que eles vêm? Como é que eles apareceram? Foi
uma das minhas perguntas. Cantadores que tinha aprendido a cantar em jovens mas
que tinham deixado de cantar começam a surgir nestes encontros com o objectivo
de se fazer ouvir na rádio. Outros casos, cantadores dispersos e alguns a
residir no Algarve, surgem neste momento com maior frequência nestas ocasiões.
Por último, um aspecto relacionado com a forma de apresentação do cante e dos
cantadores. Nos encontros gravados pela rádio, iniciam o cante com uma cantiga
onde se apresentam e referem a sua proveniência. Portanto eles dizem que isto é
um elemento essencialmente novo. Antigamente eles conheciam-se todos, não era
preciso estar a apresentar-se e agora é transmitido pela rádio ou passa-se em
público que não conhecem o ambiente. Portanto, a primeira cantiga que eles
fazem, que inventam, que improvisam, é a cantiga a apresentar-se. Dizem o nome,
dizem de onde vêm e às vezes outros elementos. Outras das questões que constituíram
a base da problemática da investigação é o papel do cante ao baldão na
negociação ou reforço da identidade cultural local: a serra. Existe uma forte
distinção e até mesmo rivalidade entre os serrenhos e os campaniços ou seja,
entre os cantadores residentes entre a área da serra de S. Bernabé, das
Amoreiras, Corte Malhão e S. Martinho e os das planícies de Ourique e Castro
Verde, da Estação de Ourique, de Grandaços, de Casével, da barragem do Monte da
Rocha. Esta distinção é manifestada quer através dos contextos sócio económicos
dessas zonas: os serranos são na maioria proprietários de pequenas extensões de
terras e dos montes onde habitam; os campaniços trabalham, trabalhavam e
trabalharam sempre como assalariados nos latifúndios dos concelhos de Castro
Verde e Ourique. Portanto esta distinção é manifestada nos contextos sócio
económicos mas não só, também nas discussões temáticas do cante ao baldão.
Surge com frequência o afundamento da serra e do campo com as suas vantagens e
desvantagens. Este é um tema que provoca uma maior discussão, discussões
inclusivamente acaloradas. Os da Serra querem forçosamente e tentam
manifestar-se como serrenhos, que as suas terras é que são as boas, as suas
terras é que são as mais ricas, e os campaniços tentam portanto na zona da
planície demonstrar quais são as vantagens de viver no campo e as desvantagens
da serra e ocasionam horas a fio de discussão em torno deste tema. Mas para
além das questões sócio económicas e dos temas ainda no próprio estilo, o que
eles chamam o estilo do cante, ou seja na componente musical, esse têm sido a
última parte do meu estudo, é verificar até que ponto é possível algo que me
surgiu e tenho estado a analisar neste momento, até no próprio modo de cantar
entre os serrenhos e os campaniços há distinções visíveis e que eles pretendem,
portanto, continuar e demarcam a sua identidade. Pretendem vincá-las, pretendem
demonstrar e explicam mesmo porque é que não querem cantar como aquele, mas
cantam na sua forma e ocasionam momentos de disputa e de, nos próprios cantes
uns dizem que os outros é que cantam bem e os outros não, explicam porque é que
s- eles é que cantam bem. Em torno destas questões que orientaram a estratégia
metodológica escolhida ou seja, a construção de uma etnografia musical do cante
ao baldão iniciei o processo de análise de todo o universo de informação
recolhida durante o período de trabalho de campo e espero poder chegar em breve
a elementos cada vez mais conclusivos e pertinentes. Contudo, quero insistir
que se trata de um estudo de carácter sincrónico, dos aspectos que caracterizam
actualmente o cante ao baldão e no qual se pretende examinar como a música pode
ser uma elemento influenciador ou até mesmo negociador da identidade e fazer
parte da construção da manutenção e revitalização dos processos sociais. Neste
sentido eu parto para este trabalho de um pressuposto de que a música não é
processo estático, mas sim dinâmico e em construção, e são esses processos que
tento analisar no meu trabalho, e no qual as fronteiras estão continuamente em
mudança. E são essas fronteiras que também me fascinam e ver até que ponto é
que tudo isto se articula e tudo isto se constrói. Música e o cante ao baldão
tem neste núcleo ou pelo menos dentro daqueles eventos, um papel preponderante.
Portanto isto foi um esboço do trabalho que estou a realizar como digo ainda
está em curso e até espero dentro de uma ano concluir.
Obigada!
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