TRATADO DO CANTE:
 
....................... Congresso do "Cante" Alentejano
Beja, 8 e 9 de Novembro de 1997
 
PAINEL A                RAÍZES E ESTUDO DO CANTE ALENTEJANO

"Bom dia a todos. Vou apresentar uma comunicação denominada:

O CANTE - "ALMA" DO POVO ALENTEJANO - E A SUA RESISTÊNCIA AO PODER

Senhores Congressistas, Exmº. Senhor Presidente da Mesa, Exmª. Comissão Organizadora, do Congresso do Cante Alentejano, antes de mais, permiti-me que em nome da Alma Alentejana vos saúde pela realização deste belo congresso, que está na sua fase final e aonde já tivemos o prazer de participar, num debate com o nosso amigo Francisco Naia, logo em Julho, na Moita, por ocasião da Feira Etnográfica "Viver o Alentejo", aquando do lançamento do livro "Corais Alentejanos", de José Francisco Pereira.
Quero ainda em nome da Alma Alentejana, deixar um abraço solidário a todas as vítimas do temporal que nos últimos dias atingiu, particularmente, o Baixo Alentejo. Neste sentido, a Alma Alentejana iniciou já uma campanha de solidariedade, para a recolha de roupas e produtos de primeira necessidade, nos concelhos de Almada e Seixal.
E como a divulgação, a defesa e a preservação da cultura alentejana é uma das razões primeiras da existência da nossa associação, não podíamos deixar de estar presentes. Aliando um trabalho de investigação que desenvolvi nos últimos anos para uma dissertação da tese de mestrado, que estou a finalizar, denominada "O papel sociocultural e político do canto de intervenção na oposição ao Estado Novo", e a importante colaboração do Francisco Naia - que na sua qualidade de etnomusicólogo fez recolhas de "modas" tradicionais, que depois compôs, estando incluídas actualmente no seu reportório de cantor da música tradicional alentejana. Contámos com a sua amizade e companheirismo, mas também com os profundos conhecimentos que viabilizaram a realização deste breve trabalho, tanto lançando pistas como respondendo a outras tantas interrogações. Foi assim uma preciosa fonte oral, para além de obras de que nos socorremos para um enquadramento geral, casos de A Canção Popular Portuguesa, de Fernando Lopes Graça, Musica Tradicional Portuguesa - Cantares do Baixo Alentejo de João Ranita da Nazaré e "Portugal, Raízes Musicais" (recolha publicada pelo Jornal de Notícias em CDs e textos de apoio) da autoria de José Alberto Sardinha. Nesse âmbito, aceitei a solicitação e o desafio que me foi proposto, de, no âmbito do Gabinete de Imprensa da Alma Alentejana, e contando ainda com o apoio do Jorge Figueira, também elemento da Direcção e do Gabinete de Imprensa da nossa associação, embarquei nesta aventura, a presente comunicação, que vos passo a apresentar.

A canção popular portuguesa - seu significado estético e valor nacional
Partindo do pressuposto, porventura pacificamente aceite, de que a canção popular portuguesa, é, na sua essência e na sua primordial riqueza, rústica e campesina, e que, assim, é uma crónica expressiva e viva do povo português, ao contrário da pobreza e banalidade da música urbana, que para além de raras excepções actuais - caso dum Sérgio Godinho - conceptualiza-se na música pimba, como antes no nacional-cancionetismo.
Assim sendo, a música popular, sendo produto e documento da actividade estética, quer pelo seu valor de ordem educativa e artística, mas também pela linguagem e o conteúdo, afirma o seu autêntico carácter nacional, de onde é possível extrair material, mas encontrar as premissas estilísticas necessárias e as sugestões no intuito de se criar uma música culta. a sua grande riqueza e inestimável capacidade de se autorenovar, transformar, mas ao mesmo tempo, persistir oralmente ao longo dos séculos, faz claramente da canção tradicional portuguesa o cerne da canção portuguesa, onde a música culta vai beber todas as suas virtualidades, e não o contrário.
 
As modas, características e espaço geográfico
Como nos diz Fernando Lopes Graça "(...)não restam dúvidas de que os cantos corais alentejanos constituem uma das mais assinaláveis expressões do sentir musical da gente portuguesa - na espécie, a gente alentejana, cuja índole a um tempo altaneira, caprichosa e ensimesmada(...)", e que eles (nós, neste caso) reflectem de uma maneira inequívoca, "(...) do mesmo passo que testemunham de uma formação e de uma vivência estética colectivas, que muito podem prender a atenção da sociologia e da etnomusicologia.
No entanto, a música tradicional do Alentejo (que parece vir confirmar o quase axioma de que a música regional portuguesa tem a sua vera"(...) verdade(...)" tem a sua verdadeira fisionomia no domínio vocal) não se reduz aos cantos corais de que temos vindo a falar. "Cantos religiosos monódicos, assim como os cantos do trabalho" (...)enriquecem e completam o âmbito dimensional mais ou menos consabido da música alentejana, do mesmo modo que ampliam o conhecimento e as noções sobre o corpus da música regional portuguesa(...)", pelo que, ainda segundo Lopes Graça, pode-se definir o povo alentejano "(...)como sendo o mais «musical» da gente portuguesa "(...) entendendo-se por aí a sua natural capacidade para traduzir e conseptualizar em canto, a sua rara espontaneidade mélica, "(...) melódica (...)enfim, aquilo a que poderemos chamar a sua temperamental disponibilidade lírica, que o leva a achar boas todas as ocasiões, todas as horas, para dar largas à sua inata musicalidade".
As modas têm um reportório da música vocal de tradição oral do Baixo Alentejo. Têm características bastante particulares e encontramo-las numa região que a grosso modo corresponde ao Baixo Alentejo, isto é, uma faixa mais ou menos plana compreendida entre a raia e o litoral. (Era para vermos a imagem, mas um problema técnico impede-nos mas eu sugiro que imaginemos, porque conhecem bem o Alentejo, todos os que aqui estão, concerteza) Esta região delimitada a Norte pelas povoações de Reguengos de Monsaraz, Monte de Trigo, Torrão e Grândola; a Sul pela Mina de São Domingos, Mértola, Almodôvar e Odemira; a Oeste pelo Mar; e a Leste pela fronteira espanhola compreendida entre Reguengos de Monsaraz e a Mina de São Domingos. Por outro lado os coros polifónicos do Baixo Alentejo terão tido a sua origem na música eclesiástica, de que são exemplo o "Cântico ao Menino" e o "Canto dos Reis".

Os diversos tipos de cante
O cante alentejano é o canto na sua vertente tradicional, que embora ganhe um tom dialectal com as características de cada região onde cantado, personifica o "cantar as modas" na sua verdadeira pureza e essência. Serpa, Pias, Moura, Barrancos, Sobral da Adiça - onde encontramos o chamado cante raiano - assim como Almodôvar, Castro Verde ou Ourique, são alguns exemplos da maneira diferente como se canta de região para região. O cante alentejano é pois o cante vocal na sua forma mais pura, onde é apenas utilizado o alto, o ponto e os suportes.
Podemos então propor a divisão do cante em três grandes grupos:
O cante tradicional que se pode subdividir em: cante rural; cante ribeirinho; cante raiano; cante religioso; cante mineiro e cante do trabalho. Uma característica comum a este grupo será a ausência de instrumentos musicais.
Num segundo grande grupo, que designaríamos por cante popular, podemos incluir os grupos corais, os grupos etnográficos, os coros aligeirados, as cantigas dos mastros e os cantados à capella. A sua origem é sobretudo rural, mas nalguns casos pode ser a conjugação do rural com o urbano, ou sobretudo este. Uma das suas características é a introdução de elementos novos que, de alguma forma, o afastam da pureza tradicional do cante. Surge o suporte instrumental mas também os trajes, que são elaborados a partir de recolhas e estudos efectuados. O cante campaniço - que à partida se poderia enquadrar neste grupo, é, em certa medida um caso à parte. Caracterizando-se pelo uso da viola campaniça que é seguramente das mais arcaicas violas populares, e um dos mais ricos e interessantes instrumentos arcaicos populares portugueses, que se encontra actualmente e infelizmente, em vias de extinção, apenas circunscrito a aldeias dos concelhos de Odemira, Ourique, Castro Verde, mas cuja expansão geográfica atingiu, em tempos, todo o Baixo Alentejo.
Um terceiro grupo corresponde ao cante tradicional cantado nas grandes urbes, como na região da Grande Lisboa e nas comunidades emigrantes como é o caso de Toronto, Amsterdão, Bruxelas e também em França.

A vertente interventiva do cante alentejano
A resistência a todo o tipo de poder encontra-se no cante que designamos por tradicional e que é cantado pelos mais velhos, que não perderam as raízes à terra e mantém a tradição mais pura e ancestral do cante vocal, transmitido oralmente de pais para filhos ao longo dos tempos. É provável que tenha tido as suas raízes nos coros gregorianos, quando em tempos muito recuados era forma de cantar em coro permitida pelo poder. A sua característica comum revela-se na denúncia e resistência ao poder, às injustiças, mantendo a dignidade e a altivez que caracteriza o alentejano, mesmo nas condições sociais mais precárias, mantendo sempre a cabeça levantada.
Consubstancia-se em muitos casos nas modas cantadas nos trabalhos do campo. São exemplos disso cantigas como:
 
  Toda a vida fui pastor
  Toda a vida guardei gado
  Tenho um buraco no peito
  De me encostar ao cajado

  De me encostar ao cajado
  E todo o dia ali estar
  Toda a vida fui pastor
  Não me mandaram estudar
 
ou esta:
 
  Ó Serpa pois tu não ouves
  Os teus filhos a cantar
  Enquanto os teus filhos cantam
  Tu, Serpa deves chorar (...)

Outrora entoados nos campos durante os trabalhos agrícolas por homens e mulheres, este tipo de cante foi-se tornando maioritariamente masculino, à medida que a mecanização da agricultura levou à sua mudança para a taberna, onde o acesso era praticamente interdito às mulheres que deixaram assim, progressivamente, de participar nestes corais polifónicos.
Mas se estas modas deixam antever uma revolta subjacente a uma condição social inferior, onde a constatação dessa mesma condição não deixa lugar à acomodação, antes sim, à denúncia, que embora se misture com um certo misto de tristeza, preconiza necessariamente uma vontade de mudança.
A ironia também está presente nestas modas, como acontece na que se denomina "Moreanes" e tem o seguinte refrão:

  Mas que linda comitiva
  Que eu vejo ali a passar
  São os nossos governantes
  Que nos vêm visitar

ou a sátira mais mordaz e jocosa, caso desta moda:

  Maria tem um menino
  Não sabe quem lá lho pôs
  Foi o cura de Marvão
  Ou o padre de Estremoz

e continua:

  As Comadres lá na aldeia
  Falam com certa razão
  Foi o padre de Estremoz
  Ou o cura de Marvão.

É um cante com determinadas características, que se revela extremamente contundente na sua vertente diacrónica, falando de temas como a miséria, o trabalho, a dor, a alegria, a tristeza e a própria velhice, que, se encontra tratada no cante tradicional, como é o caso da seguinte moda:

  Eu gostava de cantar
  Mas agora já não canto
  Eu agora já sou velho
  Mandam-me assentar a um canto

e continua,

  Já não vou domingo à feira
  Já não ouço os passarinhos
  Já não bebo os meus copinhos
  Já me sento à lareira

Os comboios, meio de transporte importante num Alentejo não muito longínquo, onde havia poucas e más estradas, e o burro era muito usado, são também focados, numa perspectiva de revolta contra os poderosos:

  Já lá vem o comboio novo
  Muito bem embandeirado
  Se as bandeiras fossem de ouro
  Não trajava de encarnado.

Mas esta característica diacrónica do cante revela-se em cantigas já posteriores ao 25 de Abril, como a conhecida "Alentejo Produtivo", de José Vicente.
E porque os cursos de água - o Guadiana, o Sado e o Mira, nomeadamente - são também uma característica marcante do povo alentejano, ocasionam, por vezes, a existência de modas onde se interrelacionam a água com o amor e a paixão. Assim, antes de terminar, gostaria de recordar duas modas muito belas:

  A ribeira quando enche
  Vai de pedrinha em pedrinha
  E o homem que leva a barca
  Leva o meu bem na barquinha

assim como outra, porventura mais divulgada:

  Rio Mira vai cheio
  E o barco não anda
  Tenho o meu amor
  Lá na outra banda

  Lá na outra banda
  Lá no outro lado
  Ribeira vai cheia
  E o barco parado

Conclusão

Para concluir, gostaria de dizer que o cante alentejano mantém as características mais genuínas e ancestrais da forma de cantar do povo alentejano. Personifica, em muitas das suas formas, uma resistência ao poder ao longo dos tempos, interpretado pelos mais velhos que não perderam as raízes à terra.
Na sua vertente popular, é interpretado por solistas, cantores e grupos etnográficos que transformam e, por vezes, adulteram a sua estrutura original.
Por outro lado, o cante rural entoado nas urbes, fora do Alentejo, representa a resistência ao desenraizamento dos que debandaram para as grandes cidades, mas que mantém a Alma Alentejana, e daí não posso deixar de fazer uma referência, obrigatória, ao grandioso trabalho desenvolvido, em defesa do cante alentejano, ao longo de toda a sua vida, pelo Francisco Paquete.

Muito obrigado".

Dr. Eduardo Raposo

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