TRATADO DO CANTE:
....................... Congresso do "Cante" Alentejano

Beja, 8 e 9 de Novembro de 1997

 
PAINEL A                RAÍZES E ESTUDO DO CANTE ALENTEJANO

"Bom... pois... eu não sou alentejano. Vim de muito longe: de Aveiro, uma região totalmente diferente. Estas primeiras palavras que eu vou pronunciar, são ditas no sentido de me localizar, neste Alentejo e de explicar o grande interesse e o grande entusiasmo que eu tenho pelo canto alentejano, pelo Povo alentejano, pela natureza do Alentejo, geograficamente falando. Claro que a minha intervenção é pobre, porque sou médico, é certo que estudei música, executei violino durante sete anos, estupidamente quando fui para a faculdade, deixei o violino, asneiras que se fazem e enfim tenho certos elementos que me levam a entender, melhor do que, talvez, outras pessoas que não tenham tido contacto com a música assim como eu tive, tenham realmente possibilidades de entender o canto alentejano. Evidentemente que ao lado da Sr.ª. Drª. Salwa Castelo-Branco, aliás o nome não me é completamente estranho, já tenho falado com diversas pessoas acerca de esta Sr.ª. Drª., que é enfim uma pessoa que está perfeitamente dentro do problema que vamos aqui abordar e que o aborda cientificamente, creio eu, não estou errado se assim o digo. Sinto-me um pouco diminuído, em face da companhia de quem estou. no entanto e modéstia à parte eu vou realmente desenvolver o tema que me propus apresentar hoje aqui".

"ACERCA DO ENCANTO DA MÚSICA POPULAR ALENTEJANA E DA BELEZA DA SUA POESIA. DILEMAS SOBRE A ORIGEM DO CANTO ALENTEJANO"

"Ora, a razão por que eu me encontro, para falar do canto nesta região, em poucas palavras se podem resumir, desde que aqui cheguei, o canto revelou-se-me uma expressão de uma arte musical que para além de não ter qualquer semelhança, para mim, com o canto popular de outras regiões, logo se me afigurou ser de bem melhor qualidade que de outras cantigas populares do nosso País. A verticalidade do Povo revelou-se-me sem hipócritas e interesseiras mesuras face à tradicional postura de outras gentes perante certos poderes da hierarquia social. A Planície que se me revelou, a compleição geográfica mais favorável, a afirmação da verticalidade do ser que o Alentejano é, pois lhe basta erguer-se para sobre si próprio dominar léguas a perder de vista, a Planície seduziu-me pela serenidade dos dilatados horizontes tão propícios à serena meditação, à interiorização da sensação de paz que dela parece brotar. Originário do Norte do País, duma região bem diferente deste Alentejo, bastante impressionado fiquei por ocasião das minhas primeiras férias que por aqui passei, estávamos numa época do Natal, num dos últimos dias da década de trinta, quando um canto de bela e estranha harmonia me acordou, de madrugada e depois se foi afastando, lentamente, rua além para voltar a aproximar-se, rua aquém um canto de solene sonoridade, compassado, majestoso. Era um canto de grande beleza, que muito surpreendeu a minha sensibilidade. E, a madrugada, as estrelas e a aldeia adormecida (Baleizão) onde os meus pais estavam, eram professores do ensino primário, ajudavam a enriquecer a tão extraordinária harmonia aquelas horas e daquele modo cantada. Não consegui na altura entender a poesia que o grupo cantava só mais tarde me aperceberia da beleza poética que ilustra as canções populares deste Alentejo e que tanto merecimento lhes acrescenta tornando-as ímpares sem discussão.

Nas férias que se foram seguindo fui assimilando, cada vez de forma mais sentida e  mais aprofundada toda a beleza deste canto e da sua poesia. Nascido em Aveiro e licenciado em Coimbra, aqui cheguei onde as terras eram outras e outras eram as águas, outros os ares, outras as gentes, as diferenças culturais as dessemelhanças paisagísticas, a dureza do clima, as condições de vida dos servos da gleba que então conheci, constituíram circunstâncias chocantes de estímulo para o enriquecimento do meu saber e do meu entendimento. Outros costumes, outra cultura, outra vivência humana, sem dúvida. Mas o canto, as gentes deste Alentejo e esta paisagem, longe de para mim constituírem motivos de tédio, pelo contrário, definitivamente me cativaram. Canto de solene harmonia, povo isento de postura louvaminheira, isento de espírito subserviente, de facto para além de apreciar o canto popular, bastante aprendi neste Alentejo com as suas gentes, sem dúvida. Compreendi e avaliei o seu sofrimento face à injustiça dos poderes, apercebi-me que o alentejano em poucas palavras, de acordo com o seu ritmo musical, sabe expressar mundos de ideias com o mais profundo significado. Tive a sensação que as suas cantigas penetram na alma dos homens e que parecem até penetrar na alma dos bichos e das plantas, como Antunes da Silva no seu acrisolado sentir pelo seu Alentejo assim se exprimiu sobre o cantar do seu Povo comecei, então, também a sentir e a viver a minha paixão pelo Alentejo.

Vários tem sido os estudiosos do canto alentejano, mas a sua maior parte tem sobretudo feito a recolha e a gravação deste património cultural, por forma escrita e fonográfica num trabalho de campo à margem de princípios, métodos e conclusões do âmbito da comunidade científica. De todos os trabalhos publicados um se destaca pelo rigor da sua análise, com transcrições musicais adequadas, para bem se compreender o canto alentejano, com a análise completa de cada texto contemplando as tonalidades, a estrutura melódica, a velocidade metronómica, os âmbitos, a organização rítmica, as direcções, as formas finais, a forma, o carácter silábico, melismático mais ou menos ornamentado, a pesquisa de João Ranita da Nazaré, em sem dúvida de grande valor, como investigação, no campo, do canto popular do Baixo Alentejo. Os momentos vocais do Baixo Alentejo, deste conceituado etnomusicólogo constituem um trabalho exaustivo de verdadeira pesquisa científica sobre 125 canções do Baixo Alentejo, sem dúvida útil para quem deseje aprofundar os seus conhecimentos sobre o canto popular. Foi publicado em Portugal em 1986 e constituiu a sua tese de doutoramento na Sorbone em Paris. Não sei se o seu trabalho foi incentivo para, como seria desejável, alguém mais continuar por idêntico caminho na investigação do canto popular.

É claro e sobre isso não restam dúvidas a ninguém que a recolha dos cantos populares portugueses feita por Michel Giacometti foi muito mais volumosa pois incidiu sobre mais de 600 freguesias do País e reuniu mais de 4.000 registos de música gravada. Porém não a analisou sobre o ponto de vista científico. Giacometti não sabia música, tinha porém a clara intuição de que os cantos do povo podem representar como afirmação do seu valor cultural. O cantar do Povo desta região era o que, de entre todos, mais apreciava e o seu desejo expresso de ser sepultado no coração do Alentejo, em Peroguarda e de ser acompanhado pelo canto de uma moda popular religiosa, entoada pelo coro da aldeia tem muito claro significado de acentuada paixão pelo canto popular deste Alentejo.

No estudo do nosso canto popular, Fernando Lopes Graça, teve sem dúvida um papel importante. Lopes Graça foi o grande mestre e compositor que melhor soube tirar partido artístico das canções populares do nosso País e as tratou em extensão e profundidade, aproveitando toda a riqueza que o cantar do Povo lhe sugeria. Pegou no cantar do Povo e harmonizou-o em textos para orquestra e para conjuntos corais com a expressão "ritmo" características psicológicas e morfológicas que as melodias lhe inspiraram. Depois de ter composto as suas 24 canções populares portuguesas iniciadas em Paris por sugestão da conhecida cantora de então, especializada na interpretação de cantos populares Lucie Devinsk, foi então que Lopes Graça pensou ter chegado ao seu maior e mais importante resultado que foi o de concluir que a canção popular portuguesa é muito mais rica do que ele próprio supunha e mesmo do que lhe faziam antever os estudos até aí feitos, entre nós, e para Lopes Graça um dos cantos mais belos era o canto alentejano.

Outros investigadores e vários tem havido que se debruçaram sobre o nosso canto popular, mas os investigadores na sua maioria, encontram-se, como se encontravam, ainda na década de 40, numa fase de investigação quase exclusivamente empírica, meramente descritiva, o canto alentejano com todo o seu mérito, mantido ou sujeito a evolução e entre as polémicas de quando é ou não é o mais genuíno será sempre um valor cultural digno de atenção e estudo pelo que tudo e qualquer iniciativa com o intuito de aprofundá-lo em todas as suas características: estéticas, etnológicas, etnográficas é sempre uma iniciativa a apoiar.

Nesta pequena e despretensiosa intervenção apenas abordarei três de entre as várias questões que merecem ser tratadas em relação ao canto popular alentejano, mais sob o ponto de vista da minha capacidade de sentir, de aprender a expressão artística da beleza sonora que o canto alentejano me transmite; mais sob o ponto de vista do saudável lirismo com que a bonita poesia das suas modas me encanta sobre estes aspectos brevemente me debruçarei. De onde vem, onde brotou e como evoluiu esta inconfundível polifonia popular portuguesa? Interessantes questões que continuam à espera de respostas adequadas. Que direi eu mais sobre esta apaixonante questão? Às hipóteses até agora avançadas como resposta a tais questões só poderei acrescentar mais hipóteses, apenas mais conjecturas, probalidades teorias, o que afinal é bem pouco no sentido de prova de uma ou outra hipótese.
 
Há no canto alentejano que não é simples, nem ingénuo, como aliás não são simples nem ingénuas as mais variadas canções populares portuguesas. Há portanto no canto popular alentejano uma belíssima e larga elaboração que lhe dá um equilíbrio harmónico perfeito, uma ampla expressão e grande musicalidade, carregadas de potencial, ora dramático, ora patético, ora simplesmente lírico.

O canto alentejano na sua expressão polifónica, na sua dimensão e estrutura harmónica assim se caracteriza, como sabemos: é o ponto que começa a moda, isolado, cantando apenas uma parte limitada da poesia; de seguida inicia o alto o seu canto, isolado, apenas alguns segundos, mais ou menos segundos, consoante a cantiga; após o que, os dois, se juntam ao coro constituindo-se assim o belo conjunto popular, que bem conhecemos, de perfil inequívoco com as suas inflecções, modelações ou melismas, com o seu sotaque, os seus ritmos, moderado ou lento que tão bem caracterizam a cadência do cantar alentejano, ímpar, solene, profundo, sempre interpretado na digna postura de quem medita gravemente na mensagem musical e poética que transmite. Breves notas são estas as que todos poderemos aprender nos trabalhos dos que tem estudado o canto alentejano.

Não tendo eu a pretensão de entrar em pormenores técnicos, científicos sobre o cantar alentejano, pormenores habitualmente abordados pelos musicólogos e maior ou menor gabarito passo de imediato a alguns comentários sobre a poesia que tanto valor acrescenta ao nosso canto.

O cantar alentejano é ainda enriquecido por uma expressão poética de profundo sentido lírico em que os hinos à natureza são constantes. Está cheio de bonitos versos, falam do lírio roxo, da rosa e da roseira de quem o poeta já fora o seu melhor botão, da linda flor que é a da murta, das oliveiras que ao longe parecem rendas, do despertar da bela aurora, do sol que alegra o dia, da água que vai correndo mansamente, vagarosamente, a quem o poeta pede para passar pelo seu jardim para lá lhe regar uma rosa, do passarinho que pousa no raminho, da pombinha que pousa no seu pombal, do luar da meia noite que tem lá segredos seus, dos altos silêncios da noite que as vozes do poeta vão rompendo, já que de dia não pode lograr o bem que pretende, de como para cantar à sua amada o poeta aprendeu a cantar lavrando a terra molhada, dos cabelos louros da sua amada pelas encostas espalhados que parecem fios de ouro com fios de prata atados, da cadeirinha nova feita da raiz do cravo, da folha da rosa e do ramo de alecrim, das papoulas em flor no meio dos trigais, da cantarinha que chega à fonte com o barro mais corado com  medo que a água conte os beijos que lhe tem dado.

Se por outro lado atentarmos na poesia dos cantos alentejanos, assunto abordado pelo Padre Cartageno em 1982, dito em versos de piedade bem sentida estamos em presença de uma interessante conjugação de sentimentos panteístas e cristãos em que o louvor e a adoração se reparte entre a universalidade dos seres dignos de admiração e o credo no salvador, em que as raízes pagãs de uma cultura coabitam com o sentimento cristão.

Muito se tem discorrido e se discute ainda sobre as origens do canto popular alentejano, que segundo uns as janeiras terão origem nas saturnais pagãs do calendário romano; que segundo outros a sua origem estará nas festas comemorativas do início do ano agrícola dedicadas à deusa Strena que presidia às estreias e que finalmente veio o cristianismo e lhes deu novo significado e realçou nelas o dia do ano novo, a noite primeira em que Deus passou tormento: a circuncisão, o tormento que começara pelo menos mil e quinhentos anos antes, há três mil e quinhentos anos, em cerimónias religiosas que levaram à circuncisão de milhões de crianças: egípcias, judias, árabes (ismaelitas), moabitas, amonitas e continua a ter lugar actualmente entre os judeus e fora do judaísmo em rituais entre os negros de África.

Curiosa é sem dúvida a hipótese da influência pagano-cristã na génese das "janeiras" que se cantam na noite de São Silvestre e que encontro avançada numa comunicação de há anos, bastantes anos, em Braga pelo professor e etnólogo Joaquim Roque, já falecido, natural de Peroguarda sobre o canto do Baixo Alentejo. Continua também a ser defendido a influência do canto Gregoriano no canto alentejano e não pode negar-se-lhe a sua influência na poesia em louvor do Deus Menino e em todos os demais textos religiosos, ligados ao culto cristão e o canto das Almas é, sem dúvida, o canto triste o verdadeiro grito de sentida súplica para alívio das almas que no Purgatório o estão desejando alcançar e que o canto alentejano foi capaz de tornar, como nenhum outro canto popular num canto profundamente belo e solene. Mas se foi a fé dos cristãos que inspirou o fundo poético das canções religiosas populares, foi o canto alentejano: dolente, solene, meditativo que não é demais supor já tinha um fundo religioso, anterior, muito possivelmente ligado a cultos pagãos, esse canto, sem dúvida, que foi a favorável e casual oportunidade encontrada para que o sentimento e a poesia, inspirada pela fé cristã em afortunada circunstância se enquadrassem nas primitivas canções populares do Povo desta região.

Até St. Ambrósio no Século IV da nossa era as primitivas melodias cristãs corriam sem obedecer a qualquer ditame eclesiástico supondo-se que muitas destas primitivas melodias cristãs já teriam sido cantadas antes: na Grécia, no Egipto, na Mesopotâmia, na Roma pagã, servindo outros deuses, cantando "falsas concepções da matéria e da vida". Foi St. Ambrósio quem pela primeira vez as coleccionou e seleccionou, tendo nessa altura iniciado uma primeira e débil reforma das melodias cristãs primitivas. Duzentos anos depois, no Século VI, o Papa Gregório «São Gregório» também chamado: "Gregório o Grande", continuou o trabalho de colecção e selecção das melodias cristãs primitivas e a ele se atribuem grandes reformas na organização da música religiosa e a sua didáctica, tendo daí por diante o canto religioso eclesiástico seguido regras precisas e os desvios que ocorreram com o passar do tempo foram sendo corrigidos, mormente pelos padres beneditinos. Finalmente a Igreja em todo o mundo católico fixou-se numa última edição do Cantochão baseado em trabalhos dos Beneditinos que prevaleceu assim se consolidando o que se passou a chamar de canto Gregoriano.

A Igreja quando surgiu ocupou, sobretudo, os centros populacionais mais importantes, não tendo por muito tem decisivo impacto, ao que suponho, na grande maioria das áreas rurais. Sobretudo nessas áreas não me parece que tenha exercido influência por intermédio das escolas de canto eclesiástico e às vezes são invocadas como focos de irradiação da cultura musical gregoriana. Na difícil busca das origens do canto alentejano muitas hipóteses se podem colocar, porém afigura-se-me de muito duvidosa valia a que coloca o canto chão ou canto Gregoriano na origem do canto popular alentejano. E se o canto popular do nosso povo alentejano, apesar da sua dimensão polifónica, pode lembrar a homofonia do canto chão, pela solenidade dos seus andamentos lentos o caso é que nas canções populares, não religiosas do norte de Portugal, não se encontra nem a dimensão polifónica do canto alentejano, nem o seu estilo, nem os seus passos melódico/harmónicos, nem os seus andamentos lentos, nem a solenidade da sua postura que caracteriza as interpretações do canto alentejano, características deste canto e que se assumem desde logo nas canções populares profanas.

O norte do nosso País foi muitíssimo mais influenciado pela Igreja e tal situação, nem de longe se verificou no Alentejo, assim é pelo menos estranho que o canto popular dos povos do norte não viesse a ter sofrido a influência melódica, rítmica, modal e de andamento do canto Gregoriano. Por outro lado pode questionar-se se o Povo alentejano que andou sempre muito próximo de uma vivência panteísta que é de crer já cantava as suas modas antes de a Igreja aqui se instalar podemos interrogar-nos se o Povo alentejano poderia de facto ser influenciado pela melodia, ritmo e andamento do canto Gregoriano, música que ficou longe da maioria do Povo alentejano.

 
É inconfundível entre o panorama da nossa música popular o canto do nosso Baixo Alentejo. Mas não me atrevo a afirmar que o seu perfil é único entre as demais tradições culturais do Globo. Talvez na Ucrânia, sei lá, se encontrem reflexos que o lembrem e de certeza eu e a minha mulher ouvimos algo de muito semelhante aos nossos coros quando, há muitos anos, numa rua de Chechauen em plena montanha, ao norte de Marrocos, ao fim do dia, escutámos, surpresos, o canto árabe saindo de uma mesquita. E foi impressionante o que nos pareceu ouvir: um singularíssimo coro que parecia ter até o alto e o ponto no seu conjunto num canto dolente e solene tão à maneira do nosso canto alentejano. Não foi possível uma gravação, para isso não íamos preparados e a promessa que a nós próprios fizemos de lá voltar nunca chegou a concretizar-se. Falei no caso a Giacometti e a Fernando Lopes Graça que igualmente pensavam que poderia realmente haver algo no nosso canto que fazia lembrar o canto árabe, mas também não foi concretizada a hipótese de eu e Giacometti por lá passarmos por essa cidadezinha de Marrocos como tínhamos combinado.

Concluindo este assunto sobre as origens do canto popular alentejano, problema que continua à espera de uma resposta convincente, não ajuda nada, segundo me parece, fixarmo-nos sobre opiniões que porventura se desejem tornar como definitivas e sem discussão, como por exemplo é o caso de se pretender, como ponto assente, estar na sua origem o canto Gregoriano. É que, e aqui é que o problema se complica, antes do cantochão cá ter chegado já cá estava o canto popular onde muito provavelmente o povo foi influenciado pelo modo de cantar que de África passou o estreito e se acomodou neste interior alheio às influências que ao longo da história sofreu toda a costa algarvia. Não estou de acordo, por exemplo, com a opinião do Padre Marvão, grande admirador do canto do Baixo Alentejo, quando para ele, o que conta na génese do cantar do nosso povo é o canto Gregoriano. Mas com ele concordo com a sua curiosa asserção, nesse trabalho que eu consultei, que flagrantemente contradiz a sua hipótese: "A nossa música alentejana não foi ensinada por ninguém, é expontânea; nasce do coração e da intuição dos alentejanos, com uma aptidão excepcional para o canto que tem as dimensões dos sagrados momentos da vida..."No entanto logo após se deixa seduzir pela sua ideia fixa e entra em nova antinomia quando, de par com a sua opinião sobre o sabor que tinham as modas exprimindo em "magistral sinfonia a força do canto comunitário, o prazer duma alegria festiva", não deixa de erradamente, a meu ver, acentuar o sabor das modas ao sabor do homofónico cantochão.

Por outro lado não deixa de ser curioso que Tomás Borba e Lopes Graça no seu Dicionário de Musica, editado em 1956, falem do canto reformado eugeniano, um canto modificado por Santo Eugénio, arcebispo de Toledo, ao qual terá aplicado a notação gótica introduzida em Espanha pelos Visigodos em 412. Este canto terá tido a influência tonal da igreja romana, mas não a influência do canto Gregoriano, continua o texto do referido dicionário, que refere ainda que o canto eugeniano teria sido modificado pelo gosto dos adornos do canto oriental introduzido em Espanha pelos povos islâmicos que invadiram a península. E fala Tomás Borba e Lopes Graça, no seu dicionário no canto mosárabe.

Por outro lado, e ao que me parece, não será der todo ilógico pensar-se que, afinal, o canto popular alentejano, com raízes no passado longínquo com posterior influência, possivelmente visigótica e árabe, foi talvez e desde sempre, antes do aparecimento do canto Gregoriano, um canto cheio de espiritualidade, lírico, compassivo, de solene expressão, podendo afinal convir da melhor forma às exigências da fé cristã que veio depois. Assim deve ter acontecido com a canção do Deus-Menino, e com outras canções religiosas de poesia inspirada na nova fé, que tão bem se enquadraram no nosso canto popular.. Assim o canto de amor e saudade pelas pessoas amadas, do amor à vida e à natureza, na expressão poética do ancestral lirismo de origem pagã passou a coexistir no mesmo modo de cantar com a expressão poética inspirada pela nova fé.

Não posso deixar de referir que desde o momento que eu e a minha mulher escutámos o que nos pareceu um coro alentejano soando numa mesquita em plena montanha no norte de Marrocos ficámos seriamente meditando em tão surpreendente semelhança e desde então também mais nos inclinámos para admitir uma qualquer influência do canto melismático árabe, de ritmo lento, no canto melismático cadenciado do povo alentejano".

Dr. Henriques Pinheiro

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