TRATADO DO CANTE:
.......Congresso do Cante Alentejano
Beja, 8 e 9 de Novembro de 1997

11H15 - PAINEL B              SITUAÇÃO ACTUAL DO CANTE
 

 
"Como devem ter percebido eu não sou alentejano e o que sei ou que tenho reflectido sobre o canto alentejano devo muito a algumas pessoas que estão aí e ao Sr. Manuel Gaspar, meu conterrâneo de Oeiras, alentejano de gema, e também a umas viagens que tive a sorte de fazer quando tinha 18/19/20 anos com a Juventude Musical Portuguesa e onde pela primeira vez dei conta de que existia cante alentejano. Eu pensei que dado o tema em que me integrava, apeteceu-me mais fazer uma reflexão sobre uma série de condicionantes para a situação actual do cante e também aquilo que eu penso que poderá contribuir para uma transformação desta realidade e portanto são mais os enunciados do que as respostas, mas se os enunciados fizerem sentido entusiasmam-me a mim e provavelmente a muitas outras pessoas para organizarmos a estratégia e os modos de levarmos por diante toda uma questão que é evidente. Interessa a muita gente e ainda bem. Eu vou tentar ser muito conciso e pensei que a intervenção devia ser tão curta quanto possível para depois poder haver um certo tempo de diálogo. Como vos estou a roubar já tempo de almoço e nós estamos muito atrasados, provavelmente o diálogo ficará para outra oportunidade. Por um lado, eu tive a necessidade de quando eu estou a falar de música, neste caso do cante, dizer o que é que eu estou a entender por ele e como é que me situo, e em relação a uma outra questão que eu por vezes vejo muito longe destes debates e que me parece fundamental que é a questão do gesto musical, penso eu, tal como eu digo ali, tentei pôr da forma mais simples. Para já a música para mim e penso que para muita gente, é sempre qualquer coisa de relativo e reconhecido como tal por um grupo de pessoas que acham que aquilo é música e que o resto que os outros chamam música por vezes não é. O considerar que uma determinada realidade sonora é música ou não depende muito de um grupo de pessoas que lhe atribui esse significado e é de facto um universo de sonoridades e estruturas sonoras e aqui as sonoridades têm que ver por exemplo com o timbre especial que eu penso que o cante alentejano tem e digamos com a forma que nós reconhecemos imediatamente se se trata ou não desta ou daquela região, quer dizer há sonoridades muito próprias que eu penso que seria muito boa ideia tentar começar a fazer um pouco mais do que eu penso que está feito. Vamos lá a ver então o que é que caracteriza esta ou aquela região e que só para vos dar uma ideia eu assisti e vivi por dentro a situação dos encontros que de alentejanos de diversas regiões para formarem um grupo em Lisboa e como é que aquilo se casava e o que era preciso fazer de conversa e de cedência e de entendimento para admitir o timbre de um, a forma de cantar de outro e a ornamentação de outro, até aquilo fazer sentido e como foi possível, reinventar um canto, que é o canto dos grupos da região de Lisboa é qualquer coisa de espantoso e que eu penso que foi das melhores lições que eu tive sobre o cante alentejano. Em relação ao gesto musical, porque eu penso que não se pode falar de canto alentejano sem perceber que ele está intrinsecamente ligado a uma determinada colocação da voz, a um determinado timbre, a uma determinada forma de respirar e não há livro que descreva isso, quer dizer nós podemos fazer uma descrição literal mas a única forma de aprender e de fazer passar este conhecimento, que é o conhecimento, por vezes, muito complexo, é do contacto dos cantadores com quem está a aprender, que era uma situação que eu penso que o Alentejo teve até aos anos 50, antes dos grandes movimentos migratórios, antes da guerra colonial e da movimentação grande que houve e era portanto uma situação de aprendizagem presencial, quer dizer, em comunidade, como os grupos estavam juntos, nas situações em que eram permitidos, as mulheres com as mulheres, os homens com os homens, como sabemos que era e aprendiam porque estavam l‡, porque havia tempo, tempo ˆ noite para as pessoas se encontrarem, haviam longos tempos de Inverno em que havia muito tempo em casa para as pessoas estarem e portanto esta tradição não era preciso considerá-la ela passava-se de uma forma natural o que não acontece hoje e eu diria que, talvez, o mais importante que haverá no cante pode-se perder, exactamente, por não estarem criadas condições para serem transmitido isso que é mais que o repertório, quer dizer eu como Lisboeta ou um grupo de Coimbra podemos aprender um repertório mas vamos ter muita dificuldade e temos que fazer um trabalho que alguns amigos nos fizeram e que resulta mas Ž um trabalho de grande mergulho em profundidade na cultura, mas vamos lá a ver como é que isto se canta de facto, como é que é a ornamentação, como é que são os princípios das frases, como Ž que eles respiram e isso Ž o mais complexo. Os temas que eu queria trazer e que eu penso que são temas que interessarão, e que eu enunciei, naturalmente seria melhor chamar-lhe motes, como nas modas, mas o tempo e os espaços adequados ao desenvolvimento da identidade músico/gestual, quer dizer como era sabemos nós como há-de ser agora como é que nós conseguimos criar condições para que haja esta transmissão é que eu penso que está tudo para reinventar. É evidente que o papel dos grupos é fundamental, mas normalmente os grupos apanham pessoas crescidas, já, e são os que eu conheço onde há uma integração, o caso de Castro Verde é um exemplo espantoso e um exemplo a seguir, penso eu, são poucos os que eu conheço onde o grupo, a associação, aquele pequeno grupo de gente conseguiu arranjar maneira de fazer a transmissão às gerações mais novas e portanto é preciso arranjar o tempo e os espaços adequados. Eu penso que só os grupos não chegam e digamos a segunda parte quando eu destapar a folha, são algumas possíveis hipóteses de trabalho. Por outro lado quem são os transferidores e aferidores das competências músico/gestuais, quer dizer, porque nisto do transmitir tem que haver alguém que transmita e alguém que veja se a coisa está a correr bem e o que eu sinto Ž que muitas das pessoas que são os detentores do conhecimento do cante alentejano, são desconsideradas em termos de conhecimento quando por exemplo vão a uma escola ou quando por exemplo vão a um sítio onde, digamos, há pessoas com outro estatuto: de professores de licenciados, etc. que reconquistaram esse lugar e portanto eu penso que há que com abertura, ver quem de facto são os transmissores e ver quem de facto tem capacidade para fazer essa aferição, quer dizer o que é que se está a fazer, como se está a fazer como é que isto está. Um dos problemas (estou a passar por eles talvez rapidamente, mas espero que eles fiquem claros) que se põe hoje é que digamos, os jovens e as pessoas que estão a aprender o cante vivem numa outra realidade, em princípio aberta, onde todos provavelmente ficariam a comer hambúrgueres, caso não houvesse outra alternativa e alguns jovens ficam mesmo e vestem só calças de ganga ou as saias curtas, conforme o nosso amigo de há pouco, mas de qualquer forma há um aspecto que é impossível ignorar, há uma expressão pessoal, que é fruto do crescimento e da maturidade e desse confronto de influências que há que não pode ser ignorada, quero dizer, por exemplo, quando eu vejo alguns grupos, obrigam quem lá entra imediatamente a vestir o trajo para entrar no espectáculo se para alguns jovens isso pode ser até um estímulo pode ser qualquer coisa que é muito normal, para outros é o ponto de bloqueio final, quer dizer: e mais uma vez um exemplo que eu achei de boa solução, quando o grupo de jovens de Castro Verde "Os Carapinhas", assim chamados, gravaram, eu reparei que eles estavam com um à vontade enorme, eram os mesmos jovens que nós encontramos nas escolas preparatórias ou nas escolas secundárias, eram exactamente os mesmos com o mesmo tipo e também cantavam e de que maneira, quer dizer o cante é uma boa acho que nós não podemos fazer tábua rasa, digamos do que eu chamarei uma sensibilidade pedagógica e um perceber que a época é outra que é preciso que as coisas se "casem" que não haja uma recusa de certas formas de expressar dos jovens que podem impedir totalmente o trabalho. Há questões que no fundo decorrem destas que é: em que medida é que nós conseguimos criar sentimento de pertença e desenvolvimento progressivo da capacidade de assumir papéis músico/gestuais e de dança na comunidade, o que Ž que eu quero dizer com isto? Quando nós damos a oportunidade a um jovem de se integrar num grupo de cante temos que lhe dar também a oportunidade de que isso corresponda a uma subida gradual do estatuto, tal como acontece se a pessoa pratica um desporto ou se integra num outro grupo qualquer, quer dizer, o estar, o trabalhar vai dar-lhe o lugar de ser reconhecido isso, digamos que há uma série de graus que têm que ser criados quando não existem e que eu sinto, por exemplo, que os grupos que eu conheço normalmente essa liderança do grupo é desempenhada por uma ou duas pessoas e digamos que, um jovem que entra, não será mais do que um cantador durante muito ano e raramente é chamado a assumir responsabilidades, sejam responsabilidades de tipo organizativo, sejam responsabilidades de ele próprio..... a cantar, etc. porque é a única maneira do jovem perceber que ele está num grupo que daí a algum tempo será seu e que não acabará quando aqueles senhores de idade que lá estão e que cantam muito bem, por algum motivo, por este motivo ou aquele se retirarem, quer dizer esta sensação que eu por vezes tenho e vivi por exemplo com o Grupo de Casével agora há pouco tempo numa situação que eu diria quase traumática, que é um grupo que canta maravilhosamente bem que fez uma gravação, em que eu estive presente, à primeira, sempre, só quando havia um ruído exterior é que era preciso parar porque  a segurança, o rigor eram espantosos e no entanto nós olhamos para aquele grupo e é de uma média etária, não sei de 55/60 anos, portanto as pessoas têm essa idade. Há qualquer coisa, quando eu olho para um grupo destes, que me diz que houve ali qualquer coisa que falhou, conseguiram integrar um senhor alemão, por exemplo, mas por motivos vários falta lá gente jovem. Pronto, isto depois o resto decorre não é, a capacidade de aceitação da mudança nos referendos culturais próprios de integração de influências externas e de abertura a outros modos de pressão de outros grupos culturais, quer dizer por vezes eu sinto ao fazerem a restituição do repertório que recua ao início do século e ao enquistarem nele, embora tenham as modas ligeiras, nós sabemos que são mais recentes, por vezes é quase como se fosse a sobrevivência, se o grupo não fizer isso é como se o grupo se auto destruísse, mas eu penso que se não for possível haver uma renovação, aquilo a que eu chamaria uma renovação sustentada, quer dizer, o grupo fazer experiências, por exemplo, no sentido de integrar novo repertório, seja o reportório antigo que vai conhecendo, seja tentativas e experiências de novo reportório, quer dizer o grupo está condenado a ser uma espécie de vitrine que pode ser excelente, estou-me a lembrar do grupo de Almodôvar a cantar todo o reportório sacro, que Ž dos grupos que mais gostei de ouvir, mas no entanto Ž uma vitrine, é um grupo que talvez tenha parado no tempo e eu não sei se os grupos não terão que enfrentar com coragem com determinação uma renovação sustentada ou então novos papéis, novas funções que os ajudem, que os aguentem de facto. Eu passaria agora para algumas dificuldades e para algumas vantagens, nas dificuldades eu penso que por vezes inconscientemente, mas eu sou da geração em que muita gente tentava disfarçar, por exemplo o seu modo de falar quando ia viver para Lisboa ou quando ia para uma faculdade, hoje já não é assim, hoje felizmente isso já não acontece, eu tenho alunos beirões, tenho alunos do sul e os açorianos e madeirenses que fazem gala e têm uma enorme afirmação nas suas particularidades regionais, mas nem sempre foi assim, e se isso não acontece, tanto, com gente que tem os 19/20 anos e que tem acesso ao ensino eu posso-vos dizer com toda e tenho a impressão que posso generalizar, embora não esteja sustentado em nenhum estudo que a geração que tem 11, 12, 13, 14, 15, 16 anos, tem todas as condições, tal como está organizado o sistema de ensino para disfarçar e para mudar para um outro registo ou para um outro padrão de comportamentos, ou seja quando se tem 12, 13, 14 anos estar no rancho ou estar no grupo pode ser qualquer coisa que o jovem sente extremamente aviltante, digamos assim. Isto tem consequências dramáticas e digamos na situação por exemplo das comunidades migrantes que vocês saberão com certeza a dificuldade que os filhos de emigrantes têm em conciliar uma vivência que é uma vivência muito diferente, uma outra cultura, com a vivência de registo materna ou paterna e quando isso não é resolvido, as consequências que têm, as coisas aqui poderão ser um pouco mais atenuadas mas eu penso que isto é um dado que as pessoas têm que considerar, por vezes o grande problema de fazer passar um determinado conhecimento ou uma determinada prática é porque há à partida condições complicadas para este assumir os referendos culturais da sua comunidade. Por outro lado, a somar a isto por vezes os jovens, ou as pessoas, até adultas, tentam aderir a novas normas e a outras situações e não conseguem, digamos, há um falhanço e então ainda é mais complicado, porque para além de não recusarem as suas têm dificuldade em assumir as novas e evidentemente a dificuldade de um crescimento e aceitação de outros grupos culturais, por exemplo pode acontecer que haja a contrária, também, quer dizer uma pessoa estar na sua cultura, por exemplo, tudo o que há à volta é como se fosse a barbárie e portanto há um enquistamento, se quiserem e uma recusa completa de olhar para o outro e de o compreender e de o aceitar e eu diria mais, até de o integrar quando lhe interessa, porque eu penso e muita gente pensa assim que as culturas não são estanques, as culturas estão em permanente evolução e que estes contributos e estas tentativas que são feitas de integração e nós sabemos bem no nosso País que a movimentação dos trabalhadores, dos alentejanos para o norte os beirões para aqui, contribuíram e modificaram e trouxeram muita coisa que hoje está integrada tanto no Alentejo como nas Beiras como no norte do País e que ao fim de um certo tempo se provaram ficam, se não provaram caem, murcham, como a planta que se deita à terra que se não tem condições para crescer... Nas vantagens há um consenso hoje em todo o trabalho de desenvolvimento comunitário, em todo o trabalho de educação que quando se adquirem normas e procedimentos culturais isso é do mais significativo para o crescimento pessoal permitindo o reconhecimento do indivíduo como pertencente a uma comunidade, isto dito assim desta maneira pode ser um bocado longo, mas no fundo é isto é a pessoa sentir-se bem na sua pele e no sítio onde está e no sítio onde nasceu e com os seus parentes próximos e amigos e isso, digamos, ser uma referência para a sua vida, o que não impede nada de ir para onde quer que seja neste mundo. Mas essa matriz de referência das pessoas, há muita gente que diz que é fundamental para nós sermos felizes e maduros. Por outro lado, esta transmissão destes valores, desde conhecimento eu estou em crer, eu e não s- eu, outras pessoas com quem tenho falado, que existem habitualmente recursos humanos e materiais em todas as comunidades para a sua transmissão, a questão é organizá-lo e fazê-lo bem feito. As actividades artísticas eu penso que o cante se pode integrar neste domínio, é um dos domínios menos dependentes do desenvolvimento tecnológico e onde há um maior aproveitamento e de inovação a partir dos recursos locais. O que é que eu quero dizer com isto? É que felizmente para cantar não é preciso uma parafernália de sistemas eléctricos e de amplificações e de máquinas complicadas, quando eles existem é mais, mas digamos para o cante, as pessoas dependem do seu corpo e da sua voz e capacidade de organização e de encontro e portanto não estão dependentes de outros meios. Por outro lado, a prática do cante deve ser considerada como um factor de distinção, quero eu dizer, o cantar bem como foi deve ser considerado como um privilégio, uma honra e não como qualquer coisa que se passa só num grupo fechado e que está lá naquela associação. Uma constatação que aliás a Professora Salwa Castelo-Branco abordou muito bem e problematizou no sentido do desenvolvimento e organização que é hoje nós termos um enorme acervo de publicações, estúdios de gravações e imagens que nos permitem conhecer e analisar os aspectos mais significativos do cante alentejano, ainda agora ouvia... Está feito e todo este material que está recolhido, mas no fundo é, como diz a Professora Salwa, é preciso é juntar isso e cruzar a informação, isto está tudo disperso e não adianta, ainda falando com o Francisco Pereira, eu mandei-lhe a listagem das gravações, que neste momento estão no museu de Etnologia, do Alentejo e Algarve feitas por Michel Giacometti e que são digamos 80% mais do que aquilo que foi publicado nas antologias dele, quer dizer, que tem as conversas com as pessoas, que está ali e está parado eu suponho que pouca gente saberá o que lá está. E agora talvez o mais importante, e era talvez mais para a outra mesa que se vai acontecer hoje à tarde ou amanhã, e que é, hoje há abertura nos currículos escolares para a inclusão de temáticas regionais, há abertura, está na lei, está escrito em todo o lado e toda a gente ouviu publicamente, agora urge organizar.

Escolhendo reportório para os diferentes grupos etários mesmo incorrendo no risco de errar alguém tem que dizer e é preferível que fosse alguém com conhecimento de cante, que para um grupo etário, por exemplo a nível do primeiro ciclo do ensino básico, que viva no Alentejo, deveriam saber 34 modas ligeiras e mais não sei quê. É preciso dizer quais e escrevê-las num sítio e fazer um pequeno texto a dizer de onde é que são e se ninguém o faz isto não anda, é um pouco a sensação que eu tenho. A par de cursos de formação dos professores, quero eu dizer: para os professores que ainda não sabem que o devem fazer é preciso sensibilizá-los é preciso que eles abram de facto as suas aulas quer a eles próprios quer a pessoas que vêm de fora e fazer a divulgação realizada por pessoas e grupos com conhecimentos adequados e sensibilidade pedagógica, quer dizer o Alentejo tem, como sabem, um enorme manancial de cantadores, gente que sabe estar, que sabe contar, que sabe divertir e tanto quanto eu vejo o sistema de ensino aproveita pouco ou muito pouco, e é uma pena, quer dizer: há gente que poderia dar um contributo imenso e muito importante para a permanência e renovação do cante, desde que isso seja organizado e possa fluir. Eu vou terminar e agradeço terem-me convidado e desculpem ser ao fim da manhã e entrei pelo almoço dentro.

Obrigado!"
Dr. Domingos Morais

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