TRATADO DO CANTE:
........................Congresso
do "Cante" Alentejano
Beja,
8 e 9 de Novembro de 1997
PAINEL A RAÍZES
E ESTUDO DO CANTE ALENTEJANO
"Muito obrigada! e vou ser breve e vou falar
mais do futuro do que do passado. Gostaria de começar por manifestar o meu
regozijo pela iniciativa do I Congresso do Cante Alentejano que, seguramente
irá proporcionar uma importante oportunidade para debater questões em torno de
uma das tradições mais dinâmicas em Portugal. Quero aproveitar, esta
oportunidade, para agradecer aos organizadores o convite que me dirigiram para
participar neste evento".
A
minha relação com o cante começou em meados dos anos 80, quando tive o
privilégio de conhecer de perto a vila de Cuba e os seus grupos corais, onde
tenho lá muitos amigos. Seguidamente tomei contacto com grande número de
grupos, quer no Alentejo quer na área Metropolitana de Lisboa. Este contacto
com o cante do Alentejo e os seus portadores, iniciada há mais de 10 anos,
marcou-me pessoal e profissionalmente e continuará a constituir um dos focos do
meu interesse no futuro. A grande dinâmica do cante alentejano, quer no
Alentejo quer no seio das comunidades alentejanas na cintura industrial de
Lisboa e Setúbal está patente nas actividades na cerca de 100 grupos corais
activos, que o livro do Sr. José Francisco Pereira identifica.
Apesar
da literatura sobre o cante alentejano ser uma das mais extensas no panorama de
estudos sobre a música tradicional portuguesa, julgo que há ainda muito
trabalho a realizar, quer na documentação e na inventariação do reportório,
quer no estudo das múltiplas facetas musicais, históricas, sociais e políticas
do cante, o que representa um grande desafio para Etnomusicólogos e outros
cientistas sociais. Nesta ocasião limitar-me-ei a sugerir algumas áreas de
actividade e questões que me parecem prioritárias. A primeira prende-se com a criação de um arquivo audiovisual para o
Alentejo. Como sabem não existe em Portugal nenhum arquivo sonoro nacional
e a fundação de uma instituição que garanta a preservação da memória musical do
Povo Português, não parece constituir uma prioridade para o governo o que
constitui uma grave lacuna para um país com um legado musical extremamente
rico. Existem gravações que foram realizadas por vários investigadores e
entusiastas/coleccionadores, em todo o País, pelo menos desde meados do nosso
século que se encontram dispersas em várias instituições publicas e colecções
particulares sem haver as condições que possam garantir a sua preservação,
inventariação e acesso aos estudiosos aos grupos e ao público. A salvaguarda
das gravações existentes, utilizando meios digitais, actuais, de modo a
garantir a sua preservação, para as próximas gerações é uma tarefa extremamente
urgente. Por outro lado o reportório gravado deve ser inventariado e a sua
documentação sistematizada e completada. Muitas vezes existem colecções muito
extensas com uma documentação anexa extremamente breve indicando apenas o
local, a data e talvez o título, mais nada. Penso que ainda estamos a tempo
para completar esta documentação. Além disso a produção fonográfica, actual,
quer pelos próprios grupos, quer pelas empresas discográficas, em Portugal e no
estrangeiro, deve ser sistematicamente recolhida, inventariada e preservada.
Parece-me que há imenso material disponível, disperso, no mercado, que é
possível comprar, que foi publicado, não para fins de estudo propriamente dito,
mas que constitui de facto uma fonte extremamente importante.
Dada a
inexistência de um arquivo sonoro, a nível nacional, parece-me urgente a criação de um arquivo fonográfico, regional
ou distrital, tendo os seguintes objectivos:
1.
Reunir e salvaguardar todas as gravações de campo e de arquivo, existentes do
cante e das outras tradições musicais do Alentejo.
2.
Complementar as gravações sonoras com a documentação escrita e iconográfica
disponível.
3.
Inventariar os reportórios documentados, incluindo textos e melodias.
4.
Recolher, arquivar e documentar, sistematicamente a produção fonográfica
actual: CDs e cassetes. Tanto dos próprios grupos, como das empresas
discográficas.
5
Promover projectos de documentação audiovisual do cante e das outras práticas
musicais actuais do Alentejo que poderão ser levadas a cabo em colaboração com
a Universidade que disponibilizará Etnomusicólogos qualificados para colaborar
com estudiosos alentejanos: os próprios portadores das tradições. Estes
projectos deverão documentar não só o desempenho do cante, mas também a memória
dos seus cantores, compositores e poetas. É muito importante falar extensamente
com estas pessoas que são portadores da nossa história recente e registar as
suas memórias porque através dessas memórias podemos reconstituir um passado
extremamente rico onde o cante fazia e tem um lugar importante.
O
arquivo regional com o perfil, acima delineado, deverá ser aberto a consulta
dos grupos dos investigadores e do público em geral. A importância para os
investigadores é óbvia, mas talvez nós não pensemos na importância que tem para
um jovem de 14 ou 15 anos que queira ouvir, como é que os seus avós cantavam,
há 50 ou 60 anos e ir a um arquivo e de facto ter acesso a isso. Eu tive um
bocado esta experiência, nos Estados Unidos, onde os arquivos, de facto,
desempenharam um papel extremamente importante na revitalização de tradições
que já tinham desaparecido. Por outro lado os próprios grupos de facto, muitos
tem em seu poder gravações antigas, de 20 ou 30 anos, que serviram como fonte
importantíssima. Se não houver um arquivo estas gravações vão-se perder. Vão
ficar dispersas. Portanto é mesmo extremamente urgente reuni-las,
disponibilizá-las, sistematizá-las e facultá-las para consulta geral.
Também
pensando no futuro gostaria de dizer algumas palavras de tópicos e questões que
ma parecem importantes estudar no futuro e antes disso gostaria de falar do que
é a etnomusicologia, hoje. A moderna etnomusicologia é uma disciplina que visa
o estudo da música enquanto fenómeno cultural, social, económico e político
dinâmico. O trabalho do etnomusicólogo ou da etnomusicóloga não se limita a
recolha, a recolha é importante mas não é a única coisa que fazemos. Abrange um
estudo mais vasto de processos e comportamentos sociais em que a música
desempenha um papel central. Segundo esta perspectiva, da moderna
etnomusicologia, a noção de música não se limita à componente acústica mas
abrange um leque mais vasto de comportamentos e processos, incluindo os gestos,
os movimentos, a palavra.
O
cante é uma das tradições, musicais, mais documentadas e estudadas em Portugal
o que não quer dizer que o seu estudo está feito à exaustão, de maneira
nenhuma, as obras de algumas das pessoas que foram referidas aqui. Por exemplo
o padre António Marvão; o padre António Cartageno; Prof. Manuel Joaquim
Delgado; Prof. João Ranita da Nazaré, entre outros, são referências imprescindíveis.
Por outro lado as gravações publicadas pelos próprios grupos ou de empresas
discográficas e por estudiosos são documentos valiosos que fornecem uma
perspectiva histórica sobre a prática musical.
O
trabalho realizado em torno do cante alentejano focou, sobretudo, a sua origem
(apesar do facto como referiu o Dr. Henriques Pinheiro, continue a ser uma
questão em aberto e talvez nunca se consiga resolver), as suas características
musicais, a sua estrutura, etc. a classificação do reportório e as suas mudanças
(refiro-me ao trabalho do Prof. Ranita da Nazaré, nesta questão). A
documentação e a investigação realizada, fornecem um excelente ponto de partida
para futuros trabalhos que deverão dar prioridade, sobretudo, às questões que
se prendem com a realidade actual do cante e com a sua história contemporânea.
História essa que podemos ainda documentar devidamente.
Parece-me
importante desenvolver projectos de investigação que explorem os seguintes
aspectos da prática do cante. E vou mencionar apenas alguns que me parecem
muito importantes:
1. O
Historial da transplantação do cante para a Cintura Industrial de Lisboa e
Setúbal e o seu impacto sobre a prática do cante, quer no Alentejo, quer na
área Metropolitana de Lisboa (estão presentes entre nós algumas pessoas, aqui e
outras pessoas que vamos ver mais tarde. Algumas das pessoas mais importantes
nesse processo). Temos que documentá-lo de facto.
2. O
papel do cante na vida das comunidades quer no Alentejo quer na Cintura
Industrial de Lisboa e Setúbal. (Porque é que as pessoas fazem esse esforço de
ir aos ensaios, de reunir as pessoas, de fazer as suas saídas. É um esforço
muito grande. Repetidamente os meus amigos em Cuba, no Barreiro e em outros
sítios onde tive o privilégio de contactar de perto com esta tradição sempre me
referiam a dificuldade que tinham de continuar. Mas olhamos para eles e alguns
estão no grupo há 40 ou 50 anos. É de facto notável. E na minha perspectiva a
pergunta que se põe: porquê? porque é que as pessoas se reúnem e continuam a cantar
desta maneira?).
3. A
relação do cante e as outras práticas musicais no Alentejo, no passado e na
actualidade (tem se ideia que o cante é uma coisa separada do resto, muito
distinta, mas parece-me que se olharmos um pouco mais, profundamente, podemos
descobrir algumas relações. Acho que é uma questão importante a desenvolver).
4. Por
outro lado parece-me importante, também, desenvolver-mos trabalho sobre o papel
dos indivíduos, na criação e na divulgação do cante. Concretamente precisamos
de identificar e elaborar histórias de vida e identificar a obra dos poetas dos
compositores dos estudiosos e dos dinamizadores do cante. Alguns estão ainda
vivos, felizmente, outros já não estão entre nós, mas existem entre nós pessoas
que os conheceram bem e que aprenderam com eles e que poderão nos guiar para de
facto reconstituir essa história.
5. A
relação entre o cante e a organização social e política do Alentejo. As
mudanças actuais do cante: o que está a mudar, de facto? (penso que neste
Congresso vamos aprender muito sobre isso) como ocorreram? quando? porquê? o
que significam?
Estas
são, apenas, algumas das questões que me parecem fundamentais abordar.
Para
terminar gostaria de afirmar a abertura do Instituto de Etnomusicologia da
Universidade Nova de Lisboa, de que sou presidente, para colaborar com
indivíduos, grupos e entidades no desenvolvimento de trabalhos de comutação e
investigação sobre o cante e as outras tradições musicais do Alentejo.
Muito
obrigada!."
Drª.
Salwa Castelo-Branco
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