TRATADO DO CANTE:

Congresso do Cante Alentejano
Beja, 8 e 9 de Novembro de 1997
 
PAINEL D VALORIZAÇO DO CANTE ALENTEJANO
-         Ensino e Etnografia



Comunicação do Eng. Manuel Ramalho

Eu não tinha intenção de falar hoje mas fiquei bastante emocionado, é o termo, com a homenagem que o senhor Cónego Aparício prestou a um homem da minha terra, a um mestre do cante. É coisa que nós nunca ouvimos de facto nestas coisas sobre o cante e de cultura popular falar nas pessoas que fazem as cantigas porque alegadamente e de facto com toda a justiça, quando uma coisa vem para a rua pertence ao povo, é de toda a gente, mas esquecemos de facto estas pessoas. Conheci muito bem, foi um homem que privei muito com ele, o mestre Estêvão Branco, um homem extraordinário que fez coisas lindíssimas que algumas delas temos gravadas e que não conhecidas das pessoas, outras tenho-as na memória. Esse é de facto o meu agradecimento pela homenagem que prestou a este homem. O que eu vejo aqui “Que Modas, que modos” como legenda deste congresso e de facto algumas das coisas que eu irei aqui dizer já se falaram ontem, peço desculpa se isso for repetição, s- como eu não estive cá ontem enfim ... vou começar por cantar uma moda que ilustrará o que eu vou dizer, é assim: “Ó lampião, lampião/alumeia rua abaixo/eu perdi o meu anel/às escuras não n’o acho/às escuras não n’o acho/ deixei-o cair da mão/alumeia a rua abaixo/ ó lampião, lampião”. Ora bem, aqui à cerca de 50 anos, eu tenho 52, nasci ali num monte entre Amareleja e Moura, e quando se trabalhava no campo com muito mais gente nas mondas, havia um homem que veio à Amareleja que tinha por incumbência buscar o avio para aquela gente toda que estava lá, um exército de gente à monda. Era o mano Ca Cau. Na Amareleja não chamo “tios” aos mais velhos, chamam “manos”. O mano Ca Cau lá veio num carro de parelha à amareleja buscar o avio. Trazia uma série de encomendas: de feijão, de massa, de arroz, de azeite, de carne, disso tudo. Passou-se um, dois, três, quatro dias e o mano Ca Cau não aparecia. E o lavrador lá se meteu no carro e foi à busca dele e encontrou-o já na estrada nova quase a entrar no monte estiraçado em cima de uma quantidade de sacos, cantarolando. O senhor, claro, todo zangado, disse assim “então só a uma hora destas é que chega?!...” e ele desce por ali abaixo e quando chega: “senhor compadre, não se zangue comigo eu venho atrasado mas trago uma moda nova”. Era esta do Lampião. Há cerca de três ou quatro anos em Lisboa com uma quantidade de amigos que nos juntámos para almoçar, pessoas dos Serviços Florestais, onde eu trabalho, às tantas propuseram: vamos lá cantar uma cantiga alentejana, vá começa lá tu, vamos cantar “Menina estás à janela”. E eu: “Menina estás à janela/com o teu cabelo à lua/”. Começou logo tudo a gritar: “é pá isso não é assim” “mas então isto não é assim?” – até me assustei – “então não é assim, então como é que é?” e ele então ensinou-me: “Menina estás à janela/com o teu cabelo à lua” ... Ora bem, isto é o que eu posso chamar “cultura de ricochete, isto vai lá para fora, depois vem cá para dentro. É preciso ver quando agente fala “que modas e que modos” que modas sobretudo eu não direi que o cante terá os dias contados, de maneira nenhuma, mas há necessidade absoluta de preservar aquilo que existe para que ele fique guardado e não lhe façam mal. Será com um Instituto, como já foi proposto e acho muito bem, será com outros organismos, enfim, possivelmente milhentas propostas foram feitas e de toda a validade. Seria muito importante recuperar... – julgo que estará em Cascais todo o espólio de Giacometti, coisa de muita vali, homem com quem privei algumas vezes -  enfim, para que não haja adulteração das modas (e não se pode chamar a isso uma modificação, uma evolução do cante). O cante é como foi feito, com uma certa vivência no campo, com os trabalhos, cantigas de bailes, cantigas de namoro. Tudo isso se perdeu, essa forma de viver no campo. Portanto, tudo isso terá que ser preservado para não ser adulterado como vemos muitas vezes por aí. Outras será talvez a maneira de vestir do cante, a forma das pessoas se apresentarem. Vemos grupos que aparecem vestidos de uma forma ... As pessoas nunca se vestiram assim. Haverá grupos que têm esse cuidado de se apresentarem, de parecerem com os ceifeiros, o porqueiro, o cabreiro, tudo isso tem muita valia, outros com o seu trajo domingueiro. Mas depois põem um lenço, sabe Deus como, que não terá muito a ver com a forma como as pessoas se vestiam. Então haverá que ter esse cuidado, penso que, não só o cante ser representativo daquilo que se cantava como a forma de vestir também era assim. Portanto isto foi só uma ilustração destas coisas que eu aqui disse. Mas primeiro que tudo e foi para isso que eu aqui vim e repito, o meu agradecimento ao senhor cónego pela homenagem que prestou a um homem a minha terra, o mestre Estêvão Branco.

Obrigado!
Eng. Manuel Ramalho

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