TRATADO DO CANTE - Figuras do Cante

TRATADO DO CANTE - Figuras do Cante:
Visconde de Vila-Moura


"Onde Cantares mais belos?
...Belos até à exaustão!"

"E quão desconhecido é ainda esse trecho maravilhoso do Mundo, ostensor magnífico da cor; de céus extremos: por vezes tremendos; chão de estevas, searas formidáveis, com a graça, o movimento das grandes massas de água; planura de pastores e ascetas; paisagem de contemplativos, de cantores: de gente que dá à voz as tremulinas mareantes, enlevadas, dos cantores do chão, quando o palpitar, do estremecer da planície, à música de certas tardes...

- Quando há anos, revelámos, num trabalho quase esquecido (Terras do Sul - Cantares Alentejanos - in Revista "Águia" - Porto 1916/17) a extraordinária fonte lírica, notável sob os pontos de vista mais exigentes, que são os Cantos Alentejanos, corrigindo uma informação leve, gratuita, de Oliveira Martins, que algures, havia afirmado que o Alentejo não sabia cantar, - escreviamos sob a impressão do orfeão mais vivo, natural e maravilhoso, que em terras portuguesas, nos fora dado ouvir!

Ah, o orfeão alentejano é bem o transporte, o êxtase, do homem em canto; sua expressão mais alta e mais funda, como só a encontramos no habitante da estepe Eslava; alguma vez, no coral da gente misteriosa dos Alpes!

E, contudo, é clara sua sugestão: a sugestão da Terra; daquelas tremulinas, vivas e transparentes às horas cruas do dia; das músicas sombrias, lutuosas, pelas noites; da harmonia ascencional, incenso da voz, por vezes, que os alentejanos recebem do mistério da charneca; e o chão parece subir, filtrar religiosamente para eles...

Temos para nós que o Mistério é o maior elemento de Arte, porque é na razão mais íntima e forte da Vida. Pelo que inteiramente se enganam os falsos artistas que toda a obra pretendem tornar precisa, nítida. Se a vida o não é!

O Canto Alentejano é belo no seu escuro ou suave tumulto, tal como vem, se despega da índole: se é do génio nativo, do instinto!

Em sua razão a graça abstracta, ausente, da planura; uma crepitação viva, natural e fatal, como a do lume. Umas vezes em seu sonido, - as músicas perturbantes de um ressoar tremendo, como de caudal de sangue; outras - uma voz de brisa; e, em todo este expressionismo profundo - um ritual grave, alando-se à distância, supremo de religiosa agonia; a alma em alumbramento, em estado de dor, a dor em estado de sonho!

E, contudo, doce terra a despeito de inóspita, apartada e selvática - onde os homens cantam como estevas rezinam"...
(in " O Poeta da Ausência")

"Misteriosos cantos! Como Oliveira Martins, quase sempre o cronista do sonho, como dos nossos pesadelos, errou desta vez a figura do alentejano, ao informar-nos, na sua História de Portugal, de que ele só rarissimamente cantava! Bem pelo contrário, podemos afoutadamente dizer, o alentejano, e sobretudo o natural do Baixo Alentejo, rarissimamente deixa de cantar.

Ali o ouvimos sempre, estranho no seu imemorial lirismo, e tão singular e entranhadamente dramático como jamais o sentimos!

O coro alentejano é ainda e, sobretudo, a composição do homem no ermo, o canto da soledade que parece voar-lhe da boca verdadeiros ecos da terra.

Também por ventura daí a impressão da sua maneira, duma bizarria inigualavelmente evocativa.

É claro que isto não é lembrança aos empresários de orfeãos e editores de quadros populares que, de quando em quando, se dão a transplantar o que jamais pode dar-se fora das terras em que foi criado.

Aqueles orfeãos soariam entre os farrapos e a silharia dos nossos teatros com a mesma verosimilhança que lá usam as tempestades da cena, de facto, tempestades de lata.

Nem os cantores da pastoral alentejana, cremos, se sujeitariam à especulação.

De igual arte o apanhado de quadras, tal como geralmente se pratica, a esmo, sem atenção pela sua vida regional - feito com a leveza que usam as crianças nas colecções de selos - é, no melhor dos casos, um trabalho inútil, muitas vezes um erro de síntese, de molde a atenuar a expressão da alma do Povo, que importa ouvir na sua verdade, sem desfalque.

A obra do povo de tal maneira toma vulto nos seus cantos que estes não sofrem outra designação que não seja a do seu nome ou da obra anónima, o que vale o mesmo.

Ora com que direito há-de a especulação contrafazê-la? E, entretanto, esta contrafacção tem-se realizado em nome da Arte, tal a compreensão que dela, geralmente, se tem.

Como quer que seja, o que importa assinalar é que mais artista do que o que cria Arte é ainda aquele que se defende do crime de a contrafazer.

Ora o respeio pela lenda, como por tudo o que entende com a sua herança d'alma, usa-o instintivamente o Povo, talvez pela mesma superstição da sua ignorância admirável.

Exactamente porque não tem a pretensão de corrigir a obra anónima, sabe acrescentá-la; e o mais que usa é esquecer o que não lhe quadra à alma, que é também por via de regra, o que não tem beleza.

Pois que a vida é para o artista o aspecto delicado das coisas como quer que sejam e onde quer que existam, de boa alma importa que ele se lhes dê inteiramente. Ora, assim o compreende o supremo artista - O Povo, e designadamente o Povo do Alentejo, tão estranho na maneira de sentir a frenologia da sua paisagem como na razão rítmica e imaginativa das suas canções que de bom grado sobrepomos ao mais do lirismo e modulações corais da música popular portuguesa.

Com efeito, bem ao contrário do que afirmava Oliveira Martins, no Baixo Alentejo tudo canta, e, o que é mais, todos sabem cantar.

Velhos e moços nós ouvimos tardes inteiras, as raparigas ensombrando do seu canto as caras redondas, estranhos globos de luz, - a luz ambar da sua raça; Eles, velhos e moços, abstractos na atitude recolhida das coisas; e todos, de olhos longe, perdidos na mesma razão originária do seu lirismo, como fracções dum convento disperso, ecoando, religiosos, a onda triste da sua grande alma!

Porque onde o grande historiador tem razão é na afirmação absoluta da sua tristeza. Aí sim! No Alentejo, pode dizer-se, quase não há alegria. E daí o facto do alentejano, principalmente o mais meridional, cantar sobretudo a sua tristeza. Ao contrário dos seus vizinhos algarvios, o canto é para os pastores do Alentejo, uma das suas manifestações mais tristes, como também a mais constante às suas horas de ócio.

Esta tristeza é do seu génio lírico, cujas composições prendem, em geral à terra ou ao amor.

Compilam na sua canção queixas amorosas, duma ternura sem esperança e uma espécie de geografia da alma expressa na lembrança da terra, ou mais designadamente, dos lugares em que nasceram.

Estes os motivos, a bem dizer, únicos, do seu trecho lírico, e que tão fundamentalmente se casam ao estilo, como eles dizem, dos seus coros.

É ver a quadra seguinte, que tantas vezes lhes ouvimos:

Comparo Beja com Évora,
Baleizão com a Salvada,
Alvito com Vila Nova,
Alfundão com Peroguarda.

Aos moços da Margem Esquerda do Guadiana e que passam por ser, como os de Serpa, os melhores cantadores do Distrito, ouvi a seguinte canção, tristíssima, da maior melancolia:
A SOLIDÃO:
Quem parte, parte sem vida,
Quem fica nem alma tem,
Não tem alma, não tem vida
Quem se aparta do seu bem.

Foram sempre os povos das pastorais os melhores cantores, colhendo o seu lirismo dos montes, na soledade e mór recolhimento quando mais próximos estão da terra ou de si próprios.

Ora entre nós quase não tem sido cuidado o seu estudo. Os nossos cancioneiros em lugar de serem coleccionados segundo a província ou o agregado de origem, de forma a darem a geografia da alma portuguesa, quer no seu conjunto, quer nas suas cambiantes e indicações de nuance - são, pelo contrário, formados de quadras dispersas, em regra de geneologia desconhecida e desapropriada.

Como quer que sejam, o que é facto é que não podem passar espercebidos aos menos curiosos dos nossos artistas, os cantos alentejanos tais como, ali, são cantados, uma vez que procurem ouvi-los ou o acaso lhos depare.

É como já notámos, dum carácter sempre distante a gente alentejana, mas é ali, nos seus cantos, que por ventura ela mais, naturalmente, se revela e onde portanto melhor importa senti-la.

E não se imagine que o Povo cante unicamente meras composições de velha colheita, os cantos em definitivo já tratados pelo tempo. A gente alentejana forma um povo que tem como nenhum outro em Portugal, o culto da canção que improvisa a momento. Em cada passo da sua tristeza, como da sua remomeração tranquila, encontra ele o espiritual de novas canções. Há ainda ali a viola de arame, viola campaniça, como lá dizem, que ouvi à porta de uma taberna, tangida por um cego."
(in "Revista "Águia" - Porto 1916/17")
De Visconde de Vila Moura
((Desenho de António Carneiro, publicado em Doentes da Beleza, 1913)

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