TRATADO DO CANTE - Escrito...

Imagens do Alentejo (documentário da vida alentejana), de Henrique Zarco, colecção Amanhã, 1936, Imprensa Artística, Lda. Ilustrações de Manuel Ribeiro Pavia (1936 capa 2 cores, 3 il., extratexto 1 cor.)


Da colecção “Amanhã” aos seus leitores
“Desejando estimular o mercado livresco e tornar conhecidos alguns valores novos, ofuscados pela densa neblina onde gravita um punhado de astros sem luz própria, e cujo brilho é devido apenas aos reflexos reverberantes de velas acesas em Capelinhas do Elogio Mútuo, deliberou esta colecção pôr o seu esforço e boa vontade ao serviço de uma causa elevada, tentando arejar a mentalidade portuguesa a rajadas de luz, emitidas por novos sóis, com vida e brilho próprios.

(…)

Este volume, Imagens do Alentejo, documentário vivo e calcinante, sem grandes preocupações literárias, da fecundante região dos grandes senhores e dos grandes escravos, é uma obra essencialmente regionalista, onde são cantadas as belezas do seu solo, e as grandezas e misérias do seu povo, pelo jovem alentejano Henrique Zarco.

Este novel escritor, ao delinear esta obra, quis chamar a atenção dos homens de letras, artistas e governantes da nossa terra para essa fecundante região que se estende ao longo duma planície tam vasta, que se perde de vista na imensidade do dourado das espigas trazidas à superfície pelo esforço hercúleo dos seus filhos e … que não lhes garante o pão para o seu sustento.

É pois, para esse manancial de beleza ardente e artística, em cujo solo escaldante se abrasa e esquece este nobre povo alentejano, que apelamos para todos os corações sensíveis, que auscultem a vida desta dolente gente que revolve a terra em busca do minério e do pão.”

 ...

“Do grande poeta António Boto, publicamos esta formosíssima “Canção Mutilada”, escrita em louvor do povo que sofre e que trabalha nas escalvadas planícies do Alentejo.

Canção Mutilada

A tarde cai amaciando a terra,
E enchendo-a de miragens tentadoras
Enquanto o Sol,
Nos últimos alentos,
Se prende aos galhos de um arbusto
Que, ressequido, à beira de uma ermida,
Parece o próprio símbolo da Vida.

De enxada ao ombro, alguns trabalhadores,
Pisam o pó e as pedras dos caminhos
- Como bandeiras humanas
Movidas pelo infortúnio,
Sem alegria, sórdidos, curvados,
Mas enormes no seu frémito de luta!

Ah!, nem a Morte quer os homens
Quando eles são desgraçados!

As estrelas lá, no alto,
Riscam cintilantes brilhos.

E em bandos –
Os maltrapilhos,
Silenciosos e ateus,
Zombam do Amor
E até de Deus!

A miséria
Quando atola
O homem nos seus negros labirintos,
Dá-lhe, também, a loucura
Dos mais trágicos instintos…

Agora, neste momento,
A noite –
É a imensa realidade…

E eu julgo ver a justiça
Afundar-se na penumbra
Da sua inútil verdade.

Alentejo – 1936
António Botto”
(páginas 145 a 151)

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