TRATADO DO CANTE - Escrito:
A
Canção Popular Portuguesa, de Fernando Lopes Graça. Publicações
Europa-América. Coleção Saber nº. 23. (cota 784.4 (469) nº. 26157 GRA,
Biblioteca Bento de Jesus Caraça – Moita.)
Outra
personagem que muito falou sobre o “Cante”, foi Fernando Lopes Graça, figura
maior da nossa música, com obra ímpar como musicólogo e compositor. Homem que
extravasou em muito a pequenez, por vezes tão evidentemente dramática, do nosso
país à beira mar plantado...
De
um almanaque dos anos 40 transcrevemos passagens de um seu artigo de opinião:
“A
alma do alentejano é profundamente musical e o canto é o elo vital que liga
aqueles seres primitivos no sentimento de uma fraternidade de destinos, na afirmação
de uma comunidade telúrica. Em qualquer parte o alentejano se reconhece e
identifica, reconhecendo e identificando do mesmo espaço os seus irmãos em
carne e espírito, mediante o viático das suas canções.
O
ar e a paisagem vibram constantemente de melodias. É, porém, no silêncio da
noite, da vasta e profunda noite alentejana, que estas ganham toda a sua altura
e projecção anímica; (...)
O
estudo da canção alentejana está ainda por fazer, tanto por escassez da
necessária documentação, como por falta de especialistas perfeitamente
habilitados,que a analisassem de triplo ponto de vista musical, psicológico e
sociológico. (...)
A
canção alentejana é por via de regra, larga, dolente e triste, de uma tristeza
nada depressiva, antes nobre e serena, de um colorido sóbrio, de uma linha
severa, nisto reflectindo a monotonia grandiosa, hierática e, por assim dizer,
ensimesmada da própria planura alentejana. (...)
Um
exame mesmo perfunctório da canção alentejana revela nela duas sedimentações:
uma moderna ou, em todo o caso, relativamente recente (talvez não ultrapassando
o século XVIII ), e outra antiga, de uma antiguidade que não é fácil
determinar, que abrange naturalmente por sua vez diferentes épocas, mas que não
será muito aventuroso levar nalguns espécimes até aos tempos medievais. (...)
Falar
das letras (constantemente renovadas) das canções alentejanas, constituiria
capítulo dificilmente exaustivo, em matéria que dava para suculento e
apaixonante livro. Não resisto, porém, à tentação de consignar aqui uma meia
dúzia de documentos da riquíssima poética popular alentejana, permitindo-me
chamar para eles a atenção dos nossos poetas eruditos, em cata de expressões
renovadoras da sua por vezes tão cansada musa.
Primeiro,
estas duas maravilhas, tão medularmente portuguesas: “
Ó
Serpa, pois tu não ouves
os
teus filhos a cantar!
Enquanto
os teus filhos cantam
tu,
Serpa, deves chorar.
Aqui
tens meu coração,
se
o queres matar, podes...
Olha
que estás dentro dele:
se
o matas, também morres.
“Que irmão ignorado de Bernardim pôde conceber esta quadra de puro recorte
clássico?“
Pus-me
a chorar saudades
ao
pé duma fonte, um dia,
Mais
choravam-(n) os meus olhos
que
a própria fonte corria.
“
E que poeta do Cancioneiro de Resende inventaria mais graciosa expressão do
amor palaciano do que esta ? “
Ó
olhos da minha cara
não
olhai para ninguém;
já
que perderam a graça,
percam-(n)
o olhar também.
“E o cinismo, a velar não se sabe que premências de ordem social, contido nestes
quatro versos?“
Anda
cá, amor,
que
eu inda te aceitó.
O
que os mais não querem
é
que eu aproveito.
“E a ironia sorridente destes dois tercetos ?“
Olha
a noiva se vai linda,
no
dia do seu noivado.
Também
eu queria ser casado.
Ser
casado é ter juizo,
acho
que é bonito estado.
Também
eu queria ser casado.
“Por último, atentem neste inapreciável quadro de um tão perfeito realismo
impressionista:“
Eu
ouvi,
mil
vezes ouvi,
lá
nos campos
rufar
os tambores.
Das
janelas
bradam
as damas:
já
lá vem,
já
lá vem meus amores!
in: "Boletim do Cante Alentejano" nº. 2 de Outubro de 1997.
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