TRATADO DO CANTE - Escrito:

COMUNICAR ATRAVÉS DAS MODAS
A relação médico - doente é fundamental para um bem estar físico, psíquico e emocional do doente.


Em situações graves em que os doentes estão em perigo de vida, nomeadamente, nas Unidades de Cuidados Intensivos, onde existe um arsenal de equipamento médico que de alguma maneira torna um espaço mais mecanizado levando a situações de maior “stress” emocional, quer ao doente, quer ao médico. Esta situação é minorada quando a empatia médico - doente se torna uma realidade.
 É a propósito de um caso de um doente internado numa Unidade de Cuidados Intensivos cuja relação entre o médico e o doente foi útil para um melhor bem estar físico, emocional e biológico deste.
Trata-se do Sr. José Paixão de 80 anos de idade, natural da Salvada (Beja) que após viuvez, iniciou um quadro clínico sugestivo de doença oncológica (cancerosa). Para um melhor esclarecimento da sua doença e acompanhamento familiar, foi trazido para Lisboa,  onde foi submetido a intervenção cirúrgica complicada sendo por isso internado numa Unidade de Cuidados Intensivos de um Hospital Central.
É do conhecimento da classe médica de que os doentes alentejanos são em regra geral, pacientes colaborantes e com uma grande capacidade de sofrimento, por vezes “estóica”.
O “tio” Zé Paixão não fugindo a esta regra, no entanto e  perante o internamento do qual não fora avisado estando permanentemente sob vigilância médica, conectado ao ventilador e monotorização cardíaca, envolvido por sistemas “complicados” para um doente que nunca tinha sido internado mostrou - se inicialmente pouco receptivo e com um negativismo marcado por má aceitação da “agressividade” a que fora submetido na tentativa de lhe prolongar a vida.
O médico que o tratava na Unidade de Cuidados Intensivos, também ele alentejano, conhecedor das vivências e da cultura alentejana cedo se apercebeu de que se tratava de uma situação grave, desta forma, adoptou a mesma forma de falar, a mesma pronúncia e expressividade características da sua região (Beja). Assim se iniciou o diálogo:- “ Atão “ti Zéi” vamos até ao Alentejo?”
Este respondeu com os seus olhos expressivos uma vez que não podia falar dado que se encontrava entubado e ligado ao ventilador. O olhar foi a forma mais prática de comunicar entre os dois intervenientes. Perante tal encontro, o ti Zé apercebeu-se  que estava com a sua gente, tornando-se por isso mais colaborante, e receptivo aos tratamentos aplicados.
Na hora do silêncio, um novo diálogo surge;
-Atão ti Zéi, cantamos a moda?
- Ao que o tio Zé responde com um leve brilho no olhar.
- O médico começa numa toada baixinha, muito baixinha, a moda :
                   Alentejo, é nossa terra
                   Oh quem nos dera, lá estarmos agora
                   Prà` a mocidade, com saudade,
                   Ouvir cantar, como ouviu outrora...

O tio Zé com a emoção, olhos razados de lágrimas, agarra a mão do médico com força como que estivesse pela última vez ouvindo o mais belo cante da planície. Da mesma forma o médico não teve mais palavras, senão um desvio de olhar com a lágrima ao canto do olho. Ao presencear tamanho acto de solidariedade humana, a enfermeira sente-se sensibilizada e comenta... “ Só mesmo os alentejanos !!” “Só mesmo eles!!!”
Como é habitual em Unidade de Cuidados Intensivos, os doentes necessitam de ambiente anti-stress, pelo que é utilizado música clássica ou outra como forma de bem estar assim juntamente com “Fellinni”, “Bethoven”, “Verdi”, “Pavarotti”, juntou-se um especial CD “É Tão Grande o Alentejo” cantado pelo Grupo Coral os “Ganhões” de Castro Verde, tendo o tio Zé Paixão tido a oportunidade de ouvir o profundo cante do Sul até á sua “última” viagem. Pena é que não tenha sido tocado também um CD do Grupo Coral da Salvada.
Em homenagem ao alentejano...
Que se cante à alentejana!!!  

José Simão Miranda (médico)

In: Boletim do Cante de Outubro de 1997.

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