TRATADO DO CANTE - Almanaque:
“O
“Monte” Alentejano
O
Alentejo é inconfundível com outras terras de Portugal. Uma planície, ou quase
planície, em que o relevo apenas contradiz a platitude, e tira a monotonia, com
o variado acidente. Tudo é vasto e largo. E parece desabitado, tanto a terra
sobra. Quem vem do norte, onde tudo é dividido, e murado, espraia-se,
distende-se na amplidão. O carro rola, quilómetros e quilómetros à hora, sem
uma casa… A presença do homem é sensível nas culturas, trigo, cereais,
olivedos, azinho, sobro… Récuas de porcos. De espaço em espaço, lá no
horizonte, uma mancha branca, caiada, que esplende ao sol: um «monte»…
Monte
é montanha, serra, ao norte; aqui é casa, é casario, em torno da casa grande…
onde se recolhem os produtos da lavoira, os instrumentos da agricultura, os
animais domésticos, os trabalhadores, os donos…
De
perto, o «monte» está numa pequena elevação, a casa alvinitente, sua chaminé
alta com um penteado de andaluza, uns frisos azues com barras, e em torno das
portas e janelas… O celeiro, a casa dos manteeiros, as dos homens e mulheres de
jorna… tudo limpo, asseado, irrepreensível.
O
monte difere do montado, da herdade, da fazenda: estas são expressões
gradativas da propriedade rural; essa é a agremiação humana do ruralismo. Em
torno, as criações. As dependências. As medas de feno. As cegonhas, um par, que
nidificam sobre o colmo. As flores do campo, rosas albardeiras… O azambujo
silvestre, que será «cavalo» da oliveira. Há ermos, ao longo das estradas, o
tojo aberto em oiro, e a esteva, cujas flores alvas são turíbulos de incenso… À
distância sobro… de sobreiros nus, cor de ferrugem ou burel intenso, ou
vestidos lentamente, nove anos, até se despirem da cortiça, que lhes arrancam.
Ou azinho… de azinheiros, que dão bolota, com que se criam os suínos… Suínos
que, no Alentejo, são inteligentes… ruivos como sobreiros descortiçados, são,
às vezes, de procedência diversa, vários donos e levados fora do povoado, para
as adúas ou logradoiros, terra de todos, onde pascem e dormem… Quando, à tarde,
o adueiro dá o sinal de partida, é uma debandada… Os porcos tresmalham, em
direções diversas e vertiginosas, derrubando transeuntes, cada uma à sua casa,
ao seu quintal, onde a pitança de lavagem, ou trávia, os espera. Nenhum porco se engana; é como gente, como nós.
Essa
gente, rapazes e raparigas, são, no Alentejo, os ganhões, à jorna, empregada
nos montes, montados, herdades, para os serviços agrários. As mulheres são
aptas para o varejo e apanha da azeitona, e para a monda às ervas daninhas ao
trigo. O poeta da terra, o Conde de Monsaraz (Macedo Papança), na Musa Alentejana, canta:
As mondadeiras andam nas
mondas
De rego em rego, sempre
a cantar,
Troncos curvados, ancas
redondas,
Braços roliços e o peito
às ondas
Que não se quebram como
as do mar…
……………………….
Saias, roupinhas de
chitas claras,
Chapéus redondos, lenças
de cores,
……………………….
Que rico assunto para
pintores!
E
na sacha, na vindima, na espalhação dos estrumes, na ceifa… colaboram com os
homens.
Cântaro
alentejano ao ombro, vão teorias de raparigas, robustas, caminho da fonte, - a
água não bastaria, se fosse para lhes apagar o fogo dos olhos ramalhudos…
Os
homens, fortes e esbeltos, tostados do sol, têm uma fala quente e rude, que
lhes reflecte a alma robusta. Arrancam a cortiça ao sobreiro, são pastores para
o gado; no lagar fazem o azeite, recolhem o pão aos celeiros; o feno levanta-se
com garfos, nas medas; correm com os malteses vagabundos; carregam cortiça, o
azeite, e trigo, uma vida de indústria e de trabalho… Protegem-se contra o frio
com os çafões, calças ou perneiras de pele de borrego, (não filho de burro,
porém de carneiro…), a simarra ao peito, e, se mais qualificados, o capote
alentejano, de boa roda, de lã negra, de triplo pano no busto, e peliça ao
pescoço… Um grande chapéu de abas largas e direitas, jaqueta amelada de
alamares, calça justa sobre botas de salto de prateleira, está o rapaz abonado…
Cantam
e bailam, rapazes e raparigas, com lentidão triste… O amor é profundo e austero…
O amor que cria e, por isso, não brinca: é sério e rude:
S’ó meu amor me quer
baim
É só cum el’e e cummigo;
Nã se meta na cumbersa
Quê nã mi meto consigo…
Uma
delas, dessas belas mulheres, delicada flor de poesia, Florbela Espanca, não é
diferente, e define-se:
Meu rude coração de alentejana.
Ainda
quando amam, o coração não se lhes amolece, como os das outras; ficam como o de
Mariana de Alcoforado: «Como é possível que lembranças de tão doces momentos…
sirvam somente agora para dilacerar-me o coração? Pobre dele! Tais saltos me dava
no peito, que parecia forcejar por arrancar-se de mim e voar para ti».
Concluo
que, quem goste de amar, profunda, fortemente, deve viver no Alentejo… Amar de
rijo, como aqui se diz.
De
amar, e de viver, a vida integral…O céu límpido verte fogo no verão, verte frio
às noites e, no inverno, frio ainda mais frio, porque é seco e duro. As
estrelas têm um brilho fascinante nesses céus sem nuvens. O espaço distende-se,
trigais, azinhos, olivedos, sôbros, e mais sobreiros, azinheiros, oliveiras,
pão, até que a vista descansa num monte… muito longe de outro monte… A solidão
é companheira do homem, companheira dura e austera. Por isso, em casa, há o
agasalho, a limpeza, a lareira, a açorda, o guisado de porco, a gaita de boca,
que eles chamam, ironicamente, «piano de cavalariça», e o balho em que as saias
se sacodem desenvoltas, turvando o juízo aos homens:
Estas é são as saias,
Estas mesmas é que são;
Bem cantadas, bem
balhadas,
Batidas de o coração!
Depois,
a música e a dança cessam, e a noite começa, a noite que é o dia, o calor, o
trabalho dos que amam…
Hauri,
num «monte» do Alentejo, onde me levou a Amizade, no Barrocal, junto a
Montemor-o-Novo, toda a poesia rude e simples, meio moura, meio cristã, do
Alentejo… Compreendi como a terra plana fez o montado, o trigal, o pastoreio.
Fez, sobretudo, o homem que fica em Portugal… O norte emigra. A praia é um
convite a fugir da terra… O Algarve, ao sul, também pesca, também vai lá fora…
O Alentejo, como o Ribatejo, são os que ficam: celeiro dos outros, que
trabalham para a exportação. O Alentejo faz pão, e azeite, e carne, para a
casa. Se não fosse o Alentejo, Portugal ter-se-ia ido embora… Em má hora.
Graças ao Alentejo, Portugal ficou, e os outros voltaram. Não preciso de outra
razão para amar a mais nossa das minhas terras…”
In:
“Viagens na minha terra – Portugal I”, de Afrânio Peixoto. Desenhos de Alberto de Sousa. Edições da Livraria
Lello & Irmão. 1938. Págs. 199/202.
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