TRATADO DO CANTE - Escrito:
"SABORES E CANTARES
«Para mim,
para sempre, ficam ligados os
cantares e
os comeres alentejanos.»
Matilde Guimarães, 1944
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DURANTE SÉCULOS, como o faz notar Monarca Pinheiro (1999), o alentejano
viveu de «frustração sublimada em
invenção. Com as migalhas que lhe couberam, soube inventar uma cultura de
eleição, e esta é, talvez, a sua maior glória. Do pouco fez muito e bem».
E entre esse muito e bem, nascido da alma deste povo, salienta-se a sua
capacidade inventiva nos cozinhados, a que o autor se refere como «arte dos comeres», a par da «arte de musicar»,
internacionalmente reconhecida, em especial, através dos seus cantares.
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Parafraseando
Mário Rodrigues Correia, Director do Centro de Formação Profissional do Sector
Alimentar, na apresentação de “A Cultura Gastronómica em Portugal – Alentejo”
(1995), a cozinha alentejana, como cozinha tradicional que é, afigura-se como
uma «serenata de aromas e sabores
do passado que se prolonga pelo presente e que, pretendemos nós, se perpetue no
futuro». Nestas palavras alude-se, de forma poética, a um
sentimento generalizado alusivo a uma certa associação que, em particular no
Alentejo, se faz entre os sabores da sua cozinha e as vozes dos grupos corais,
sentimento esse, já expresso também por Mathilde Guimarães (1944), ao afirmar: «Para mim, para sempre, ficam ligados os
cantares e os comeres alentejanos».
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Não será exagerado
dizer que todo aquele que teve o privilégio de ouvir os homens em coro e,
sobretudo, se o tiver feito numa das muitas tabernas onde os cheiros da cozinha
invadem a zona de convívio, não poderá deixar de fazer esta associação. Quem já
comeu numa qualquer aldeia do Alentejo e, a dada altura, os homens se levantam
e se abrem em coral nos seus cantares, únicos na museografia nacional e
mundial, não pode deixar de ligar os sons e os sabores que ali persistem, como
que a fazerem frente à mundialização cultural, há muito iniciada pelas
televisões, bem antes da globalização económica de que agora tanto se fala..
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Sempre associei os
aromas da comida dos alentejanos aos seus cantares. E isso resulta de uma
vivência começada em criança, quando ia à taberna do Monginho buscar meio litro
de vinagre e por lá me esquecia a ouvir os homens, à volta de uma grande mesa
forrada de oleado, repleta de pratinhos com petiscos perfumados e de copos de
vinho, uns cheios, uns meios, outros vazios. Foi numa destas idas ao Monginho
que o «Meu lírio roxo»
nunca mais se separou do grão cozido, a fumegar, temperado de azeite, vinagre e
muita cebola, que os homens comiam à colher, para acompanhar sardinhas acabadas
de fritar.
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Uma outra vez foi
na tasca do Rabino, em Valverde, com os rurais que ali trabalhavam nas
escavações da Anta Grande do Zambujeiro e no Cromeleque dos Almendres com o
arqueólogo Henrique Pina. E nesta era o coelho frito, temperado, de véspera,
com alho e pimentão, e as perninhas de rã, de tomatada, ao som do «Deitei o limão correndo...».
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O aroma e o sabor
do toucinho assado, na brasa, com pão à navalha e copinhos de aguardente
perfumada, saída ainda quente do alambique, na grande adega das Cortiçadas, em
São Sebastião da Giesteira, nunca mais se separou do «Ao romper da aurora, sai o pastor da
cabana...»
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Uns tempos mais
tarde, ainda a «Grândola, Vila
Morena», do Zeca Afonso, não tinha a conotação que passou a ter a
partir “daquela Madrugada”, os seus belos acordes remataram uma monumental
açorda de poejos com bacalhau e ovos cozidos, comida lá para as tantas, para
“desenratar” de uma jornada de fartas comezainas e muitos copos, nas bodas de
um parente.
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A última situação vivida deste casamento de sabores e
cantares teve lugar em finais de 1998, na Pousada dos Lóios, em Évora, durante
um almoço oferecido aos participantes do «1º Simpósio Internacional para a
Paleobiologia dos Dinossáurios». Uma vintena de cientistas de nomeada, oriundos
das cinco partes do mundo, saborearam as belíssimas entradas de paio, presunto
e queijos locais e deliciaram-se com o magnífico ensopado de borrego, olhando e
sorrindo para nós como que a dizer «que coisa boa!». Começavam eles a
regalar-se com a encharcada, bem perfumada de canela, quando um grupo coral de
homens e mulheres, envergando os seus trajes regionais, irrompeu lá no fundo do
grande claustro, cantando e marchando, grudados uns aos outros, numa mole
humana que se aproximava, lenta e cadenciada, a passo certo, num crescendo de
arrepiar os cabelos e trazer aos olhos uma lágrima rebelde: «Olha
a noiva, se vai linda...»."
in. “...COM POEJOS E OUTRAS ERVAS”, de
A. M. Galopim de Carvalho, ed. Âncora Editora, coleção Raízes, de Novembro de
2001. Pag. 57 a 59.
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