TRATADO DO CANTE - Escrito:
“A manhã vem vindo
António Luís tinha muito amor ao canto. Dentro do Baixo
Alentejo foi o homem que melhor cantou, desde a moda difícil «Ribeira do Sol
Posto» até à muito difícil «Deus-Menino». Mais nenhum. João Fitas, também da
vila de Cuba, foi no seu tempo quem mais brilhou. Ele diz, algumas vezes, que o
canto alentejano se vai perder. Tenho na minha que não tem razão.
Manuel de Castro, João Contrabandista, Chico Lapita, os
Viegas, e tantos outros, sempre cantaram, em grupos, com nome prantado ou não,
em todos os tempos, no Alentejo. Camponeses, trabalhadores rurais e mineiros
daqui ninguém os arredou. Nos mastros de S. João, nas «vendas», no trabalho, na
ida das mulheres, de madrugada para a apanha do chícharo e do grão, deram à
mão-cheia, em poesia e música, nas modas, o conhecimento do Alentejo. Os mineiros
de S. Domingos, desde as greves do tempo do Tio Valentim, passando pela ofensiva
da política fascista em 1949-50, com a grande leva de prisões, no concelho de
Mértola e em todo o Alentejo, nunca deixaram de cantar protestando contra o
imperialismo. «Ó Mina de S. Domingos/
Cercada de Calitrais/ És mãe dos estrangeiros/ Madrasta dos nacionais». Os
da mina de Aljustrel, rurais debaixo do chão, também responderam à tentativa
contra-revolucionária do «28 de Setembro» com uma moda que cantaram por todo o
país.
João Fitas, trabalhador da Reforma Agrária: «Enquanto
houver um palmo de terra não saímos daqui». Pois é, João, andamos ao campo. E
quem anda nele – pássaro, bicho ou homem – tem por força de cantar. Se não
canta, rebenta. Dois ou três não vêm apagar a conversa de vinte ou trinta. Em
democracia temos de ser concretos: é ou não é. Toma tento, João. Às vezes,
andas arrasado de um todo e pensas na tua que te vão roubar as modas alentejanas.
Não tas roubam como não te podem roubar a terra. Ela lá está no lugar, onde
nascem essas modas. Podem, quanto muito, fazer-te passar fome, a ti e a toda a
nossa gente. Mas o corpo resiste. É como o restolho do trigo debaixo do Sol.
Atrás de uma subida vem sempre uma descida. Não nos podem prender. Quando o
inimigo nos põe nessa situação, cantamos a moda (quem seria o maltês que a teve
na ideia?): «Vamos lá saindo por esses
campos fora…».
A manhã vem vindo, João. É Abril. Vem vindo, como na
moda, dos lados da Aurora…”
In: “Crónicas de ver Alentejo", de João Honrado. Edição da
Associação de Municípios do Distrito de Beja. 1992. Pág. 113.
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