TRATADO DO CANTE - Escrito:

"ABNEGAÇÃO DE UMA ALDEÃ


(…)
Ambos felizes e radiantes rodopiaram nos braços um do outro, cantaram umas décimas e repicaram as saias alentejanas obrigatórias nestes bailes (Entrudo). Quando atiraram ao ar o seu cantar mimosearam-se mutuamente com versos ternos, apaixonados, de derriço amoroso tão sólido e opulento como os sobreiros do campo onde ambos trabalhavam, regando a terra com o seu suor bendito, essa terra que os antepassados regaram com sangue libertador da independência alentejana.
É acusada de rude e muito seca de espírito a gente alentejana. É sem razão. O Alentejano é, até, bastante sensível, sentimental, amorudo. Bem o dizem as suas canções, dolentes exactamente por serem sentimentais; o seu falar lento, arrastado; os seus olhos profundos, mouros, sonhadores; os desenhos que gravam nos tarros e nas cornas, onde o coração aparece quase sempre como motive principal, o que também figura nos lenços de assoar e nas roupas que as raparigas bordam; nos barros lustrosos e empedrados lá está, também, o coração, como primordial motive de decoração, quase sempre; nos quadros e outros adornos recortados em cortiça figuram o Pombo e a rola, símbolos do amor e da ternura; no papel com que os namorados se carteiam aparece, no alto, o pombo arrulhando, o coração atravessado pela seta, a sangrar; na feira é preferido a loiça fina que pintura alusiva ao amor, ao casamento; os postais ilustrados que ornam as casas humildes versam sempre o tema eterno do amor; nos quadros encaixilhados que vestem as paredes da habitação popular lá está o amor, o namoro, o casamento, o bambino a ensaiar os primeiros passos; quando more um parente ninguém sente mais do que um alentejano, o que bem se revela no seu carpir; acompanha-se logo a família enojada e o cadáver ao cemitério.
(…)”

Conto de Casimiro Mourato


In: “Almanaque Alentejano – 1955”. Edição da Casa do Alentejo, Lisboa. Pág. 213 a 220.

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