TRATADO DO CANTE - Escrito:
“A CRIAÇÃO DA POESIA POPULAR PORTUGUESA
(…)
Havendo selecionado as cantigas deste livro em dezenas de
cancioneiros regionais ou locais e em cerca de sessenta mil trovas, mais ou
menos diferentes, tivemos ocasião de constatar que o acervo das mais belas
quadras, das que em si guardam mais sabor e expressão popular, se canta de
norte a sul e leste a oeste, em todos os cantos de Portugal. Constitui uma
espécie de Bíblia lírica, de Evangelho do amor, adotado e aperfeiçoado por todo
o povo português.
Duas outras razões nos convenceram dessa predominante
origem e genuinidade popular das trovas cantadas pelo povo. Primeiramente, o
talha e a fragância rústica dessas pequenas flores. Dalgumas a beleza e o primitivismo
formal são inseparáveis da linguagem do povo. Ouça-se esta quadra alentejana
que reproduzimos, sem alteração de sinal gráfico, do “Cancioneiro Alentejano” de Victor Santos, tão pura de forma, tão
cheia de côr e pitoresco desgarre:
S’és
galo alivanta a crista,
S’és
frango larga a pinuge;
S’o
desafio é comigo,
At’os
sapatos e fuge.
A beleza plástica da quadra é, como se vê, inseparável da
prosódia popular, como nesta outra, reproduzida das “Cantigas Populares
Alentejanas”, de Pombinho Júnior, onde abundam casos semelhantes:
Água
clara não se turva
Sem
haver quem a ennode;
Amor
firme não se muda:
Ainda
que queira não pode.
E esta outra ainda:
Contrabandista
valente,
Corri
campinas e vais;
E
os guardas na minha frente
Com
pistolas e punhais.
Outras vezes, sente-se na pequena trova uma maneira tão
simples e direta, tão isenta de todo o artifício literário e, por isso mesmo,
tão empolgante, de exprimir o sentimento, que, só por si, exclue toda a ideia
da origem culta. Ouça-se:
Já
os atalhos tem erva
Depois
que aui não vieste;
Dize-me,
amor da minh’alma,
Que
agravo de mim tiveste?!
Ou:
A
minha amada morreu,
Eu
já não a torno a ver;
A
flor no campo renasce,
Ela
não torna a nescer!
(…)”
In: “O que o povo canta em Portugal”, de Jaime Cortesão.
Coleção Clássicos e contemporâneos. Edição de Livros de Portugal, Lda. Agosto
de 1942. Págs. 21 a 30.
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