TRATADO DO CANTE - Ser do cante pelo toque da viola:

"O CÍRCULO DO BALDÃO








Depois de pastorear o olhar pela paradisíaca macieza multicolor da planura alentejana, sobrevoada de cegonhas a anunciar novo ciclo, eis-nos a refrescar a garganta na tasca da Mariana Maria na estação de Ourique, Casével, Castro Verde.

Foi fácil a nossa entrada, mas se calhar não serão tão fáceis os motivos que ali nos levaram por quem éramos e por quem somos. Envolvidos como estamos com a problemática do cante alentejano, apanhar o rastro à viola campaniça leva-nos a considerar a travessia feita por Colaço Guerreiro, presidente da cooperativa “Cortiçol”, homem de paixões fortes e de sentir eficiente, homem de amor à arte e de intervenção persistente, homem de princípios com vocação para concretizar. É bom estar com homens desta têmpera que já rareiam. No entanto, os nossos objectivos eram assistir ao ensaio do conjunto das “Modas Campaniças” que é apoiado pela cooperativa “Cortiçol” e é constituído por quatro violas, por uma voz masculina, a do Francisco António, também tocador, e por três vozes femininas: a de Mariana Maria, a de Alice Maria e a de Maria Inácia.

Chegámos no meio do ensaio e encontrámos Colaço Guerreiro a orientar o grupo, sempre dando possibilidades a todos os elementos de se autoconduzirem e de se disciplinarem.

O ensaio, como é hábito, acontece naquela taberna num recanto a que o sol não chega. Não é da sombra que nasce a luz?!...

Mariana Maria aproximou-se da porta, único foco, naquele espaço, susceptível de ser exposto à luz natural.

Mal o sol entrou sóbrio e divertido na escuridão, o grupo organizou-se para o ritual do baldão, ocupando o centro da tasca. Sentados ao pé uns dos outros, formaram um círculo. Notava-se-lhes na postura um alto grau de concentração, ao mesmo tempo, porém, uma disponibilidade e confiança no inesperado que se preparavam para receber e exprimir, numa sintonia ancestral.

Começaram as violas: Amílcar Martins, homem do silêncio, todo ele uno com a sua viola e com todas as que vai construindo com meticulosa dedicação; António Bernardo, mais impulsivo e senhor de uma bela voz; o Mestre, Manuel Bento, a quem a vida levou a casa nas cheias de Novembro e a companheira, Perpétua Maria, depois de terem imortalizado o seu trabalho conjunto num LP a que foi dado o título “O outro Alentejo” e no C.D. “Viola Campaniça”, gravado em Castro Verde em 1991; e ainda Francisco António, também ele um excelente colaborador como tocador e como cantador nos discos anteriormente referidos.
Das vozes irrompeu sumptuosa a magia, no cante dolente e espontâneo que de cada um saía em quadras quer já conhecidas quer criadas naquele instante.

Mariana Maria, com sua voz cava, telúrica, Alice e Assunção com timbres mais altos treinados na serra, e António Bernardo, alternavam o cante sem que nunca houvesse engano ou até mesmo hesitação na entrada.

(...)
Mais uma vez se encontrámos
Aqui na estação de Ourique
Mais uma vez se encontrámos
Aqui na estação de Ourique
Eu tenho que me ir embora
Quem quiser ficar que fique
Eu tenho que me ir embora
Quem quiser ficar que fique.
A treinar o que lhe digo
E aquilo que costumamos
É nesta estação de Ourique
Mais uma vez se encontrámos.
(...)
(António Bernardo)

Não fora alguém da assistência lembrar o dever a cumprir, o baldão prolongar-se-ia em festival de criatividade noite fora. Como ele é poderoso e imponente!

Os olhos de Manuel Bento derretiam de brilho no intenso manto azul das pupilas, e o sorriso de misteriosa fundura prenunciava esperança. Agora iria suportar melhor o lar em Ourique. A Páscoa (passagem em hebraico) vinha aí! A vida é feita de mudança. E já há candidatos inscritos para aprenderem com o Mestre a dedilhar a viola campaniça!"

Casével, Primavera de 1998
Rosa Pereira.

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