TRATADO DO CANTE - Crónicas:
Envolvência do cante alentejano
Neste dia que começou frio pelas bandas
de Sintra envolvemo-nos num programa de rádio (Rádio Clube de Sintra - 91.2 FM)
para falar do cante do sul. A ideia que prevalece é divulgar tudo o que
implique sul e neste domingo fez-se questão de se preferir ao sul Bento de
Jesus Caraça, nascido em Vila Viçosa, mas cuja estrutura familiar de origem
é de Montoito. Não foi fácil falar desta personagem pelo valor lógico da sua
obra. Baseámo-nos na Conferência produzida em 25 de Maio de 1933 na União
Cultural "Mocidade Livre" intitulada: "A Cultura Integral do
Indivíduo” “problema central do nosso tempo" em que Bento de Jesus Caraça
explica o conceito de cultura. Para ele o homem culto é aquele que "1º. tem
consciência da sua posição no Cosmos e, em particular, na sociedade a que
pertence; 2º. tem consciência da sua personalidade e da sua dignidade que é
inerente à existência como ser humano; 3º. faz do aperfeiçoamento do seu ser
interior a preocupação máxima e fim último da vida."
Fundamentámos musicalmente no programa as
influências dos cantares no concelho do Redondo considerando as suas diferenças
ou seja, em Montoito cantam-se as modas com tradição desempenhadas pelo grupo
coral "Os Trabalhadores de Montoito"; no Redondo, cantam-se as saias,
com influência arraiana e da Beira Baixa cantadas pelos "Cantadores do
Redondo". Repartimos ainda o programa com algumas indicações turísticas e
estatísticas de Montoito.
Partimos para Santiago do Cacém, tendo
por missão a participação num debate-reflexão sobre o cante alentejano.
Pelo aspecto da sala que nos acolheu,
repleta de gente, ficámos encantados e ao mesmo tempo expectantes porque não
estávamos à espera de tão digna assistência. Reparámos que a este nível, a
organização é fundamental para que os aspectos sensíveis deste tema como sendo
a sua motivação e desempenhos. Considerámos os aspectos organizativos a todos
os níveis cuidados, e deixámo-nos envolver pelo que ali se passou. Também aqui
não é fácil de descrever a sintonia dos interventores, dos animadores e dos
ouvintes. Destrinçando isto, nós que como interventores nos consideraram,
começámos por ouvir o grupo de cante alentejano "Harmonia", surpresa
agradável. Falámos do cante, do seu estado, dos seus problemas e sobretudo da
sua divulgação que bastante nos preocupa e aqui recebemos ensinamentos (a
começar por este tributo: sala cheia, organização, participação,
sensibilização, silêncio, modas, alegria, olhos nos olhos, lágrimas ao canto do
olho, palmas, muitas palmas).
Foi a vez de entrarem em acção os animadores e
podemos afirmar os momentos altos: a cuidada preocupação da organização em nos
proporcionar um espectáculo de cante em três andamentos: o cante trabalhado e
desenvolvido por um coral erudito, mas sem perder de vista os princípios das
modas aqui desempenhadas; o enquadramento tendo por fundo a moda "Moura
linda" desempenhada pelo grupo coral "Harmonia", e a poesia
declamada por Herbert Rodrigues, sobrinho de Vicente Rodrigues, e depois o
cante tradicional, desempenhado pelo grupo coral cubense "Os Amigos do
Cante".
Queremos, no entanto, salientar alguns
aspectos que sobressaíram deste evento: não é fácil nem o esperamos fácil, a
credibilização e a dedicação do cante alentejano. Todavia, com atitudes destas,
estamos em crer que os objectivos se atingirão, ou seja, emergir dum estado
caótico em que se encontrava o cante alentejano, da descrença, desmotivação,
irresponsabilização de todos os agentes envolvidos (grupos corais, autarquias,
governo, etc.) para o levantamento do estado actual dos grupos através da
edição de um livro que os retrata e lhes deu estatuto; para a realização do 1º.
Congresso do Cante Alentejano, sob o
lema "Que modas... que modos..." em Novembro de 1997 em Beja (sobre o
qual irá ser editado um boletim onde constarão todas as intervenções então
produzidas bem como os primeiros sinais de responsabilização) onde se abordou
toda a problemática do cante em todas as suas componentes; para a dinâmica que
todo este processo gerou e que criou espectativas em que todos nos temos que
empenhar e que eventos como este em que estivemos presentes são prova cabal que
o cante continuará e nos proporcionará momentos indescritíveis como os que
tivemos a felicidade de assistir aqui em Santiago do Cacém neste dia.
Bem hajam os organizadores "Coral
Harmonia", o público de Santiago do Cacém, os grupos intervenientes!
Nós aprendemos!
Canto secular (com base no Carmen
saeculare de Horácio)
À saudosa Diana,
Das florestas soberana,
Vela como teu irmão Apolo
Pelo alentejano solo.
Dá-lhe filhos corajosos
Simples mas muito formosos
Que queiram e saibam cantar
O meigo cante singular
Ouvido há gerações,
Cantado por multidões,
Feito de veias de barro
E raízes de chaparro!
À Sol que clareias o dia
E lhe dás toda a magia
Mesmo quando o escureces,
Enche o cante de benesses!
E vós, Parcas, que o futuro
predizeis, boa ventura
Doai ao secular cante
P'ra que ele siga brilhante!
E vós, Apolo, agoureiro,
Da música padroeiro,
Tange tua lira elegante:
Enaltece o doce cante!
Em veredas e atalhos
Nos lazeres e trabalhos
E até no largo Oceano:
Viva o cante alentejano!
Rosa Pereira
17
de Maio de 1998
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