TRATADO DO CANTE - Crónicas:

O Cante do Ladrão em Rio de Moinhos, Alcácer do Sal


Alcácer do Sal estava como sempre azul e branca, reflectida na água sadia do que nasce na serra do Caldeirão - talvez o mágico dos druidas e dele se evolando! - e a esperança  era anunciada nos campos e nos lugares mais altos por voluptuosas cegonhas, tendo-nos suscitado cantar a moda “Senhora Cegonha” com alguns dos gerontes do Grupo Coral da Damaia “Os Alentejanos” com quem nos cruzámos ali. A paragem nesta cidade tinha por fim confirmar o encontro de cantadores do cante do ladrão e poetas em Rio de Moinhos com o Doutor Lacerda e cumprimentar o senhor Presidente da Câmara.
Em Rio de Moinhos, dirigi-mo-nos à Escola onde nos esperava a Professora Catarina Cabaceira e o poeta Ananias, a quem as crianças fizeram uma entrevista  publicada num “Boletim Informativo” com o título: “A História de uma Aldeia”. Ali iniciámos o encontro, pois à medida que os cantadores iam chegando iam-se sentando à volta das mesas em rectângulo, feitos de novo meninos, rodeados das belas criações infantis que ornavam as paredes. Aquela escola, apesar do seu isolamento ou talvez por isso mesmo, é sem dúvida nenhuma factor de desenvolvimento e fulcro de dinamização da comunidade em que se insere.
O encontro tinha sido pedido pelo Secretariado do Cante Alentejano. O Dr. Lacerda  no início deu um valioso contributo, chamando a atenção para o facto de haver registos de população de há mais de cinco mil anos, como foi provado pelos exames feitos aos concheiros existentes ao longo da ribeira, e, bastante mais próximo de nós no tempo, do cruzamento de pessoas do Norte e do Sul que para ali se deslocavam para trabalhar, factores que certamente influenciaram as formas musicais que nos chegaram. Recordou ainda um pormenor que ouvira a Giacometti. Este descobrira modas que só se cantavam ali e em Figueira de Cavaleiros. Alguns dos presentes desta última zona corroboraram a ideia, por terem ainda na memória registos de deslocação por questões de trabalho desta população para aquela onde nos encontrávamos. Enfim, ficaram no ar muitas pistas para investigação de uma região de Além-Tejo riquíssima a todos os níveis.
Passou-se a uma discussão sobre os diversos cantes ao despique: as gralhas, que se concluiu não eram próprias daquela zona, a barrenha, cantada na taberna, o despique propriamente dito e o cante do ladrão que era cantado no trabalho. Foram lembrados cantadores do cante do ladrão como o Grades que se tornara famoso. Quando um cantador era sublime nesta arte, punha toda a gente calada e era dif'cil acompanhá-lo. A princípio, o ladrão tinha baile e era acompanhado a concertina. Depois deixou-se o baile e passou-se somente a cantar. Nesta zona cantava-se, além do ladrão, o despique e a barrenha. Foram destacados três nomes de cantadores da barrenha: Manuel Páscoa, José Bicho e António Páscoa. Foi referida uma festa, a de Carvalheira, religiosa e profana, que arrastava muita gente doutros lados e onde se podiam apreciar grupos a cantar o ladrão e outros a cantar a barrenha. Com os copos, havia o aparecimento dos valentes que provocavam cenas de pancadaria, perpetuando assim a sua memória nos presentes.
Houve uma pausa no nosso encontro, o tempo necessário para nos deslocarmos até ao Centro Social onde nos presentearam com um lauto jantar com uns belíssimos pastéis de bacalhau como aperitivo ao caldo verde e ao arroz de pato bem regado por delicioso vinho, seguido de uma excelente salada de fruta. Notava-se neste jantar a inteligência e bom senso da sua organizadora, a professora Catarina Cabaceira!
Depois de bem comidos, acentuou-se o tom do convívio. Começou a concertina e reiniciou-se o cante do ladrão. Até houve quem dançasse! A seguir, houve um momento poético de alta qualidade em que vários poetas, de idade respeitável,  obedeceram a  Calíope. Reflexões sobre a vida fizeram-se ouvir como, a título de exemplo: “pelas ladeiras da vida/fui subindo enquanto pude” (...) “tudo o que tenho subido/ é p'ra descer a seguir.”
Mas, como não podia deixar de acontecer quando se juntam alentejanos, não abandonámos o Centro Social sem cantarmos todos juntos uma moda: “Alentejo, és nossa terra”.
Porém, como o  cante é mágico e dele custa a despegar, fomos para o café onde ele continuou a ressoar noite fora ao som da concertina.
Era noite de lua nova, anunciadora de novas criações. Com a alma cheia, apetecia cantar a quadra popular:

         Noite escura, noite escura
         Senhor Deus que até faz dó
         Nem que as noites todas juntas
         Se unissem numa só.


De regresso, ladeando a estrada, viam-se erectos na sua dignidade pinheiros e sobreiros, estendendo-se pela planície em misteriosa sombra. A imaginação poderia vislumbrar uma noiva aceitando o nubente em secreta cerimónia de núpcias, tendo apenas, por testemunhas, os luzeiros do céu.
De novo Alcácer, parada na noite branca da cal, reflectindo-se na água do rio, assim a ninfa Salácia, sorrindo ao deus Neptuno que, derretido pelo amor, até deixava o tridente.
No coração palpitava ainda a melodia do ladrão e dos versos ouvidos à voz da sabedoria alentejana."

Rosa Pereira
26 de Maio de 1998

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