TRATADO DO CANTE - Escrito:

“QUANDO O CANTE ERA PROIBIDO
(Exercício de escrita e decalque sobre peças do processo de querela que correu termos na Comarca de Almodôvar contra José Caetano da Ponte e outros pelo crime de sedição (revolta) cometido na mesma vila em 26 de Janeiro de 1901)




Naquele ano de 1901, a invernia tinha-se instalado penosamente dentro das vidas das gentes do sul.
Nos finais de Janeiro, com a mudança da lua, o céu abriu, a borrasca abrandou e houve anúncios de trabalho, uma boa nova que se repetiu de boca a boca: - “Amanhã, se o dia aclarear bom, os lavradores querem mulheres para a monda”.
Rua fora foram-se juntando mulheres e alguns moços de olhos ainda pregados e corpos entenguidos que iam tentar a sorte de um dia de trabalho.
Só lá adiante, já fora da vila, começaram o cante.
Tinha de ser assim, porque o Administrador do concelho, António Furtado, andava a ameaçar as experimentações vocais dos mais atrevidos e tinha reforçado o efectivo de guardas da polícia civil, para rigorosa observância do Novo Regulamento do Governo Civil do Distrito de Beja que lhe havia chegado às mãos na véspera de Natal.
Este Novo Regulamento era ainda mais proibitivo que o anterior, datado de 3 de Fevereiro de 1866 e que já tanta contestação tinha merecido e tanta tareia tinha motivado, porque para além de proibir os adjuntos, obrigava ao silêncio os cantares que o povo de um modo natural gostava de fazer despontar nas ruas e nos largos por onde circulava.
Na caminhada, já nos descampados, vingaram a vontade sustida de cantar e soltaram as gargantas, entoando do rijo a moda “Olha a laranja da China”.
Mas nessa manhã, o cantorio era, de hora em vez, entrecortado pelo falatório, pela novidade, pela notícia contada, dita e redita sempre em tom crispado, num misto de desânimo e revolta, numa mescla de contenção e ímpeto.
Ao sol postinho, largaram o trabalho e fizeram-se ao caminho direito à vila, intercalando o cante com o tal falatório, alternando as vaias com a insatisfação desmedida que sentiam e tentavam sublimar com as carcachadas que se seguiam às pragas rogadas aos guardas que tinham feito do Caetanita um frangalho.
Já se avistava o casario da vila recortado no entardecer, quando a Mariana Capacheira se susteve no andar, pararam as outras e a moçada estacou de boca aberta como que a adivinhar que vinha aí polvarinho.
- Esperem aí? Se fossem todas da minha opinião, agora íamos direito à praça cantando a moda, disse em tom de desafio a Mariana Capacheira. E se bem dito, melhor feito.
Mas, à sua espera, rondando o hotel, andavam três patrulhas dos guardas de polícia que de imediato, alçando os cavalos marinhos e aos empurrões, desfizeram a moda. Acto contínuo, surgiram na praça o Presidente da Câmara Municipal António Alves da Costa e o filho deste, Bernardo António Alves, escriturário da Repartição da Fazenda. Por alí já circulava também há tempo o comerciante abastado José Caetano da Ponte que no flagrante começou, em altas vozes, a vociferar contra o procedimento do Administrador quanto à proibição dos descantes e a insinuar culpas para o Delegado do Procurador Régio, dizendo: - “estamos em estado de sítio; isto assim não pode ser; isto não pode continuar; isto é obra do Delegado; isto tem de acabar; o Povo há-de levantar-se; o cante é costume antigo em todo o Baixo e Alto Alentejo”.
O Guarda Francisco António Gato, por ser mais espevitado ou por ter aprendido melhor a lição, respondeu-lhe que se cumpria com a determinação do novo Edital do Governo Civil e que o Administrador procedia em obediência a essa determinação.
Mesmo assim, cumprindo quase um ritual, o Delegado, o Administrador e o Escrivão saíram de tarde a dar o seu passeio. Quando voltaram, recolhendo ao hotel, já encontraram a Praça D. Luiz I apinhada de populares que mal os viram irromperam batendo as palmas, fazendo-se ouvir em cantos, gritos e assobios quadrados.
Silenciosos, fitando o vazio, os visados passaram por entre os apupos e ao entrarem no hotel, uma saraivada de pedras caíu-lhes em cima.
Estavam reunidos todos os requisitos para que a noite fosse de tensão e os desmandos acontecessem: muita gente na rua, muita vinhaça e uma vontade incontida de protestar contra o amordaçamento do cante.
Como resposta, de Beja veio a tropa em socorro do Novo Regulamento e a vila de Almodôvar esteve militarmente ocupada durante três dias.
De então para cá, ainda durante muitas décadas, o cante continuou proibido nas ruas e nas praças e em virtude disso, as mulheres quase que o esqueceram, entristecidas, receosas ou desalentadas.
A tradição do cante em feminino quase sucumbiu nesta terra (Almodôvar), como no tempo se deixam perder as memórias, como na vida se diluem os encantos.”

José Francisco Colaço Guerreiro

In: “Memória Alentejana”. Edição de CEDA (Centro de Estudos Documentais do Alentejo – Memória Colectiva e Cidadania). Nºs. 31/32. 20/2/2013. Caderno Temático “Cante”. Págs. 36/38.

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