TRATADO DO CANTE - Escrito:
“EM TERRAS DE SERPA
(…)
Pelas paredes caiadas de branco há escritos com petições
a Nossa Senhora, como por exemplo: … esta dos encantos do amor: Aqui esteve Zé Pinto e sua namorada Helena
Verdocas, a pedirem a Nossa Senhora saúde para se casarem.
«««!»»»
OLHA A NOIVA SE VAI LINDA
Compadre já te casaste
Já o laço te apanhou
Deus queira que sempre digas
Se bem estava,
Se bem estava melhor estou
Já o laço te apanhou
Deus queira que sempre digas
Se bem estava,
Se bem estava melhor estou
Olha a noiva se vai linda
No dia do seu noivado
Também eu queria ser, (bis)
Também eu queria ser casado
Ser casado e Ter juízo
Acho que é bonito
Também eu queria ser, (bis)
Também eu queria,
Também queria ser casado
À luz daquela candeia
Foi feito o meu casamento
Ó candeia não t`apagues
Hás-de ser,
hás-de ser um juramento
«««!»»»
(…)
Furando o silêncio portentoso da noite mulçumana, cantam
dois serpenses uma moda em louvor das estrelas. Os seus vultos recortam-se ao
longo de uma rua de casas caiadas de branco. Ouvem-se as suas vozes asseadas na
calidez da noitaça, roubando poesia às sombras e a pouco e pouco as cantigas
sobem de volume, arrastam outras vozes, forma-se um rancho coral de genuínos
cantadores de lendas e martírios:
Ó Serpa,
pois tu não ouves
Os teus
filhos a cantar?
Serpa ouve muito bem, e às janelas assomam cabeçasa
humanas, dando as boas-noites à melodia.
Estamos no coração do folclore alentejano, nos lugares
acolhedores onde se murmuram as canções da saudade e do autêntico amor
português à terra e à grei:
Enquanto
os teus filhos cantam
Tu, Serpa,
deves chorar…
Não chora, mas cisma. Serpa é uma vila (hoje cidade) de
casas de muita história. As crianças entoam cantigas ao poial das casas, ou em
qualquer recanto da vila. Cantam também os adultos serenas melopeias arrancadas
à quietude da terra.
Mulheres embiocadas em lenços de algodão ouvem as
estrofes dos seus homens e acompanham-nos em surdina. Desde Ficalho, ao rés da
raia, até à linda vila (hoje cidade) de Moura, Pias, Santo Aleixo da
Restauração, […] e Aldeia Nova de São Bento, os camponeses cantam o seu destino
vário, em versos de esperança e de angústia, de alegria e tristeza, cantam por
vocação e por necessidade.
Às quatro da manhã, ainda não tinha rompido a bela
aurora, uma voz perdida iniciou um canto mavioso:
Já lá vai
a nau prás Índias
Já lá vão
os navegantes …
É um poema de harmonia a música desta moda. No silêncio
perfeito da madrugada responde o rancho de almocreves, em companhia de duas
puras vozes femininas:
Choram as
mães pelos filhos
E os
filhos pelas amantes …
Quebra o enguiço do calor, que toda a tarde durou, o
bruxedo das cantigas. Dá vontade de chorar e de sorrir, ao mesmo tempo. O canto
alentejano ouvido pela telefonia perde, porém, quase toda a sua grandeza épica.
Aqui, sim, na própria raiz donde a sensibilidade se transfigura e desentranha
em vida fulgurante, se evolam para o espaço e entram direitinhos no coração do
povo os castos versos do amor e da saudade:
Dei um ai
entre dois montes
Responderam-me
as montanhas.
Ai de mim
que já não posso
Sofrer de
ânsias tamanhas …
Terras de Serpa ao luar! Serpa bebendo água nas lágrimas
cetinosas do rio Guadiana! Serpa dos restolhos e dos olivedos, Serpa das
grandes lavouras, das rimas inesperadas e dos poetas – que vais cantar amanhã?”
In: “Alentejo é sangue”, 2ª. edição revista e aumentada,
de Antunes da Silva. Capa de Luiz Duran. Livros Unibolso. (p.123 a 126).
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