TRATADO DO CANTE - Diáspora:
Da
Planície à Ilha, da Ilha à Planície
Eram cinco horas e vinte minutos da
manhã do dia 9 de Julho de 1998. Maria e José acordam sacudidos por um violento
abalo de terra.
- Não te assustes, meu amor! De vez
em quando a ilha estremece. Deve ser Vulcano novamente irado. - tentava ela
explicar a José o que frequentemente acontecia numa ilha vulcânica, criada na
confluência das placas euro-asiática, norte-americana e africana.
José não deu sinais de susto,
tivesse embora achado estranho aquele abalo. Mais intenso devia ser do que
aquele que, há 29 anos, apavorara, também de madrugada, toda a população em
Évora. Com o sangue da juventude nas guelras, José não dera por nada.
Ficaram-se os dois em silêncio de
mãos dadas, na expectativa do que iria acontecer. No vazio da escuridão, a
Natureza mantinha-se calma em sintonia com eles. O pasmo que experienciavam
sugeria o estado em que a alma vestida de branco se prepara para uma iniciação.
José pensava no dia em que, atrás
dum rebanho com o pai, no meio da planície alentejana, sentira o mesmo vazio
quando a serenidade da paisagem se desenlaçara num relâmpago e um raio rachara
um chaparro, queimando-o todo. Maria, porém, de ouvido atento ao mais ínfimo
som, recordava os abalos que fizeram aparecer o vulcão dos Capelinhos havia já
quarenta e um anos.
Apertaram mais a mão um do outro
quando, da planície aquática muito próxima começaram a ouvir um ronco como se
fosse uma potente máquina com dificuldade em pegar. Um arrepio percorreu-lhes
as entranhas. Eram as placas a roçarem umas nas outras. E como se estivessem a
ser embalados num berço de criança, balouçaram de um lado para o outro várias
vezes, ao mesmo ritmo do das paredes daquela casa que os abrigava e os deixou
intactos.
Maria sai da cama (a que José chama
tulha) e veste-se. José, um pouco mais devagar, segue-lhe o exemplo. Um carro,
fora, chamava-os. Era o irmão de Maria que, tal como José, até então não tivera
medo de tremores de terra.
- Vocês estão bem?- perguntou
imediatamente, com uma certa ansiedade.
- Estamos. E vocês?- indagou Maria.
- Por aqui parece que não está mau.
Mas há partes da ilha completamente destruídas. Parece que este abalo foi
registado em Marselha com a intensidade de seis na escala de Richter. Este deu
para assustar a sério! Dava a ideia de que nunca mais acabava! Entrem, vamos
juntar-nos em casa da mãe.
Assim era hábito nos Açores. As
pessoas juntam-se na desgraça.
José mostrava um ar pensativo, mas
não ostentava nenhum sinal de medo.
Ao chegarem à Fajã da Praia do Norte
o espectáculo era arrepiante. As plantas que verdejavam a rocha caíam
destronadas, arrastando pedaços dela com um ruído ensurdecedor. O mesmo
acontecia na rocha do Varadouro até Castelo Branco.
A povoação da Lombega estava
destruída, sendo difícil passar na estrada. E ouvia dizer-se que do outro lado
da ilha era muito pior.
- No meu Alentejo, nas cheias de
Novembro do ano passado, morreram muito mais pessoas. Aquilo é que foi
desgraça! - lembrava José. - O Congresso do Cante Alentejano ficou marcado por
essa catástrofe.
- Credo! Que tamanha desgraça! -
atalhou a mãe de Maria, num gesto de alívio e compaixão.
De novo a terra estremecia, mas os
abalos eram de intensidade menor, embora toda a gente temesse as réplicas.
Constava que a tragédia em Agadir fora causada por uma delas.
Apesar dos abalos, o pôr-do-sol foi
deslumbrante. José e Maria estavam a passar férias numa casa virada a ocidente.
O Sol, à medida que descia e vestia de rubro o céu, unia-se a eles por um
caminho marinho sereno e rutilante. Reflectindo sobre o que estava a viver, e
na maturidade dos cinquenta, José olhou Maria sentada a seu lado e confessou:
- Nós não somos mais que
formiguinhas neste Universo. Nada sabemos, nada podemos perante a Natureza
quando ela se nos desvela de um modo tão devastador. Mas a verdade é que me
sinto atraído pelo perigo. Já viste isto?
Maria sorriu-lhe num gesto de
empatia. E José, desassombradamente, ousou avançar:
- Acho que devemos ficar aqui na
ilha. Afinal isto é mesmo lindo! No extenso mar que nos rodeia verei a minha
planície. É uma planície de azul do céu e onde a luz se move em cristais
cintilantes. Achas bem?
- Se acho! Aqui, no meio do Oceano
entre vários continentes, é o lugar ideal para uma cidadã universal.
Escureceu. Quase toda a gente do
Faial dormiu na rua, se é que dormiu, com medo de mais abalos. Eles continuaram
a fazer sentir-se. Maria e José adormeceram naquela casa térrea embrenhada em
faias e urzes. E nada de mal lhes aconteceu.
Começaram a organizar a sua vida de
modo a viver na ilha. Havia que desembaraçar assuntos pendentes, mas tudo foi
resolvido eficazmente.
Nunca se sentiram sós na ilha.
Maria tece de luz os afectos,
alimentando-se de beleza que transmuta em arte.
José da mãe herdara a voz da cor das
espigas de trigo. Do pai, a arte de esculpir. A sua voz eleva todos os dias o
seu Alentejo enquanto que as mãos cinzelam matéria bruta onde criam expressões
de alegria e suavidade.
Há dias estavam a olhar o mar e a
cantar "Na planície alentejana" e viram um golfinho que saltava muito
divertido à frente deles como se quisesse falar-lhes. Maria, perplexa, começou
a ouvir uma vozinha:
- Soa por aí que vocês estão a
alentejanizar o Faial!
E
o golfinho ria-se, ria-se. Depois de muito rir, deu umas cambalhotas na água e
foi-se distanciando.
Do outro lado da ilha, uma pessoa
confessou ter ouvido esse golfinho a cantarolar: "na planície alentejana/
oiço os chocalhos do gado/o assobio do pastor/ e o latir do cão macaco". O
golfinho foi-se afastando e confessou a testemunha que ainda conseguiu apanhar
"debaixo dum sol escaldante/ vão pastando nos montados/ na planície alentejana"...
E a voz foi-se tornando cada vez mais imperceptível até desaparecer na salsa
planície, atlante, luminosa e maga.
MER
Comentários