TRATADO DO CANTE - Escrito:
UM ERMO QUE NÃO O ERA
Martinho Marques
Edição de autor
Capa (ilustração): António Paisana
Capa (foto): António Cunha
Setembro de 2015
“(…)
Apesar do pouco rigor astronómico que tínhamos
no monte, celebrava-se a mudança do ano, com serão mais prolongado do que os
serões de outras noites, geralmente acompanhado de bebidas doces, de bolos e de
um bom jogo de cartas que, no fim, também se acompanhava com bocejos. As horas
eram passadas, não só à espera do futuro ano, mas também dos janeireiros, que
era costume voltarem algumas noites mais tarde, na noite de reis, cantando as
suas janeiras, com versos frequentemente originais, que aludiam aos habitantes da
casa, desejando-lhes boas festas em voz alta, e desejando, em surdina, que eles
correspondessem com avultada comida para o seu alforge à ousadia do seu canto
em coro, quase sempre com interesse, seja qual for o sentido que se atribua à
palavra. Naquelas gélidas noites, os cantores, que compreendiam homens e
mulheres, tapavam-se com mantas e com xailes, que os abafavam a eles, mas não
abafavam vozes, algumas delas tão impressionantes como os seus cantares. Ainda recordo a noite em que o meu pai, se deitara mais cedo, trocando o calor do lume da
lareira pelo das mantas da cama, não resistiu à toada dos janeireiros e foi ao
seu encontro, erguendo-se, abrindo a porta e levando-lhes as janeiras em forma
de moedas, pão e enchidos. Esqueci a sonoridade dos cantores e a qualidade das
quadras que arrancaram o meu pai da cama, mas, se eles me pudessem ouvir hoje,
eu dir-lhes-ia:
Só sai debaixo da manta
Deixando a cama que é quente
Quem sente no frio quem canta
Fazendo aquecer quem sente
(…)”
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