TRATADO DO CANTE - Almanaque:
DEPOIS DE HORAS E HORAS a percorrer a planície
alentejana, que me vinha mostrar outra face da múltipla terra portuguesa, a
revelação de Évora. Era uma tarde de sol, uma batida tarde de sol de verão e o
branco das casas se iluminava para aumentar a tristeza do ambiente. Sempre os
amigos a conduzir-me pelos pontos turísticos. Gostaria de estar só, de ser
levado apenas pela beleza das ruas, desde as ruínas romanas ao velho casario dos
séculos dezassete e dezoito. Sinto que era a cidade portuguesa que sempre
desejei ver, percebo que se Lisboa e o Porto me evocavam laços afetivos, Évora
viria descarnada, no meio do descampado do Alentejo, mostrar-me a integridade
portuguesa, ao aberto, ao meio da rua. Consigo ficar só e, o resto da tarde, perambulo,
paro à sombra das velhas igrejas, casarões, palácios, a olhar uma pequena
humanidade silenciosa e triste passar. Mais um cumprimento severo e digno. E
rostos talhados de pedra, secos, perfis cortantes, são a fisionomia humana
refletindo a aspereza da terra. Não sei quanto tempo andei e, quase ao
crepúsculo, vem-me a lembrança de uma voz portuguesa, que vivendo aqui se
levantaria nos seus versos, para engrandecer a poesia lusitana. Uma voz de
mulher, uma desesperada voz de mulher, que um dia acabaria consigo mesma, mas
deixaria seus versos para que Évora continuasse eterna, com suas ruínas, seus
palácios, suas igrejas, a inteireza dos seus homens. Soturna e triste, chamou à
sua Évora: minha terra mourisca a arder
em brasa.
Vou andando, a vagar, enriquecendo os minutos
que restavam, para que estivesse só com a cidade de Florbela Espanca. Para que
estivesse com ela mesma, numa comunhão que os companheiros não poderiam
perceber e nem pressentir. Passo a passo, pelas
ruas ermas, sob os céus de violetas roxas, vendo-a dizer, numa integração
absoluta com a sua terra natal, que só
aqui que sinto que são meus os sonhos que sonhei noutras idades. Compreendo
o destino desta mulher, deste poeta, no seu meio, no áspero e solitário meio
alentejano, a alma a transbordar, a arrebentar em versos dos mais sofridos que
a lírica portuguesa conheceu. A minha dor
não cabe, nos cem milhões de versos que eu fizera.
Vou seguindo meu caminho, vou ao encontro dos
companheiros, e lembrando os versos de Florbela Espanca, tão cheios de
desespero de quem fez de sua obra a expressão poética de seu caso humano, como
José Régio, outro poeta e seu compatriota, salientou.
Antes de deixar a cidade, vou olhar o busto da
autora de Charneca em flor, com seu perfil moreno, lusitano. E os olhos
verdes, cor do verde oceano, sereia que nasceu dos navegantes…
As horas de Évora foram tomadas pela presença de
quem sofreu como poucos a tristeza destes ermos, para quem a trouxe em grau
máximo em seu coração, que se fragmentaria numa obra poética espantosa e que
gostaria de ver mais lida em minha terra.
Sigo pelo Alentejo a fora, através da noite, e
como que ouço Florbela Espanca a confidenciar:
Tranquilidade…
calma… anoitecer…
Num
êxtase, eu escuto pelos montes
o coração
das pedras a bater…”
In: Os
Caminhos de Casa de Odorico Tavares. Coleção Vera Cruz (Literatura Brasileira) Volume 50.
Editora Civilização Brasileira, SA. 1963. Pág.s: 15/17.
Odorico
Montenegro Tavares da Silva (Timbaúba PE 1912 - Salvador BA 1980).
Jornalista, escritor, poeta e colecionador de arte. Forma-se bacharel em
direito pela Faculdade de Direito do Recife. Inicia a carreira de jornalista no Diário de
Pernambuco, pertencente ao
grupo Diários Associados.
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