TRATADO DO CANTE - Escrito:
COM O ALENTEJO NA ALMA
Debate: Alentejo e identidade
“Estamos em 1960 (ou talvez 1962), no verão tórrido de um
Alentejo desprezado pelo poder salazarista.
…
Mas na berma da estrada começava a vislumbrar-se, ao
longe, uma poeira anormal em redor de duas silhuetas que se erguiam lado a lado
com alguma coisa por trás. No início poderiam confundir-se com miragens em
pleno “deserto” alentejano. Mas não. Eram bem reais. No seu movimento
compassado percebi pouco depois que eram cavalos, trazendo atrás de si um homem
acorrentado. Cavalos montados por aquela guarda, de farda cinzenta e botas
altas, que aterrorizava crianças e ainda mais os adultos, pelo menos os mais
conscientes das razões da sua miséria e do sufoco da sua liberdade.
…
Estes mesmos guardas, ou outros seus comparsas, eram
aqueles que regularmente frequentavam o café-restaurante da família. Vinham por
vezes em grupos de quatro, recordo-os, grandes e gordos, com ara carrancudo.
Creio agora que percebiam a raiva silenciosa que causavam à sua passagem. Sentavam-se
num espaço interior, mais resguardado da casa, e a mesa, devidamente preparada,
com toalhas de tecido branco, em breve ficava recheada de iguarias, com vinho,
presunto, queijo e às vezes outros petiscos. Ficavam horas a comer, mas falavam
pouco; e depois de empanturrados saíam como se fosse da casa deles. Já se sabia
que não pagavam a despesa, mas pelo menos era de esperar que tivessem um gesto,
ainda que fingido, de pedir a conta. Assim pensavam as vítimas daquele saque
(os meus pais). Porém na maioria das vezes nem isso acontecia. Entravam e saíam
atravessando o espaço público da taberna, espalhando um temor respeitoso entre
os clientes domingueiros da Casa de Pasto – o 15 (era esse o nome), um espaço
nos fins de semana sempre animado por grupos de homens, na sua maioria mineiros
que, entre cada rodada, exprimiam em coro a sua amargura, mas também a força
coletiva através do agora celebrado “Cante Alentejano”.
Aquele acorrentado atrás dos cavalos da GNR poderia ser
um “maltês”, o nome dado a quem, sem emprego certo nem inserção na comunidade,
procurava o precário sustento andando de monte em monte, à míngua de uns dias
de trabalho “a comedias”, como se dizia, ou seja, em troca de umas sopas e
pouco mais (“come a dias”, porque havia muitos sem nenhuma comida, presume-se).
… Por isso, o mínimo descuido era suficiente para que o desgraçado fosse parar
à “pildra”.
…
Estas memórias não se apagam.
…
A dureza da vida no Alentejo nesses anos de penúria e
repressão, para quem nasceu e vive como alentejano, não é uma mera
“recordação”, é sim um elemento que se inscreve na própria identidade
alentejana, pois a sua força é indissociável da resistência (em geral
silenciada pela ameaça, nos anos de chumbo do salazarismo). O ressentimento
cultivado por comunidades inteiras, por terem sido pisadas décadas a fio pelos
protegidos do regime, não apagou o afeto, mas, para um alentejano, este não se
mede por palavreado fácil.
…
Cada regresso é como um aconchego no seio de uma grande
família cujos gestos protetores se perpetuam através das gerações. As caras de
hoje, umas mais jovens, talvez de terceira geração, outras mais enrugadas – as
que ainda reconheço -, foram transmutadas pelo tempo, mas é a mesma família.
Felizmente, as conquistas democráticas devolveram alguma dignidade ao Alentejo,
mas apesar do envelhecimento demográfico, não apagaram essa força cultural que
hoje é reconhecida em diversos domínios patrimoniais, com destaque para os
grupos corais ou a viola campaniça.
…
Mas a profundidade afetiva e identitária a que me refiro,
apesdar de se manifestar no sentido coletivista e na solidariedade, não dilui,
muito menos apaga, as diferenças individuais, pelo que, independentemente dos
percursos de cada um, as raízes e as origens sociais não se escondem nem se
desprezam, nem pelo mais bem-sucedido cosmopolita ali nascido. Um alentejano
assumido pode ficar ou partir, mas mesmo quando parte nunca se separa. Caminha
pelo mundo com o Alentejo na alma.”
Elísio
Estanque
Sociólogo, Investigador do Centro de Estudos Sociais e
professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
In: jornal “Público” de 11 de Março de 2016. Pág. 58
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