TRATADO DO CANTE - almanaque:


“A chuva a cair em barros abrasados como os meus, faz bem. Dá sorte à terra e tira-nos um pouco de fadiga na mente.
(…)
Lembrem-se que, a sonhar, uma pessoa resiste à fome de liberdade, goza a sua vida, e a minha valentia é esta: não tremer quando cai uma pinga de chuva no meu chão de raiz. Nem de raios e coriscos. Uma aventura sem nomeada, embora, mas tão apaixonante e feliz, tal como uma criatura abrir os olhos na manhã e ficar a ver o Sol pendurado nas abas duma barragem nova. É tão belo!”
(da nota introdutória)

“(…)
Após bebermos uns tintos de Colos, um néctar, cantámos modas da nossa terra:
Ó minha pombinha branca
Onde queres, amor, que eu vá?
É de noite, faz escuro,
Eu sozinho não vou lá!

O Direitinho não cantava mal. Fechava os olhos como os fadistas, tinha uma voz de baixo, um tudo nada arrastante, mas de bom volume. O Vilhena berrava como um anojo com falta de leite, desafinando conjunto, mas já o Chico tinha trinados de rouxinol, de peito ovante, parecia que se estava a preparar para fazer uma pega… a um chibo!

Nesta altura apareceu um moço de olhos azuis muito abertos, a rir. Baba ao canto da boca. Dava a impressão de um débil mental. E era, segundo o Loução. Punha-se sério e compenetrado quando acompanhava, e muito bem, os parceiros nas modas:
Mal não uses, mal não cuides,
Não de apresses na subida:
Nós somos os alcatruzes
Da grande nora da vida!

Que ideia: alcatruzes, nora, cuides, para cuidar de algo, vocábulos sonoros na expressão dos alentejanos, palavras bastantes para se compreender um pequeno mundo de costumes às cavalitas do sonho…
(…)” (Pág. 65)


In: “Uma Pinga de Chuva”, de Antunes da Silva. Edição de Círculo dos Leitores, 1983.

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