TRATADO DO CANTE - Almanaque:

Noite de Natal

“Os três soldados entraram de roldão, gritando. A rapariga pulos na cadeira. Estava quase a cair de sono. Tinha os olhos fechados e a cabeça pendia-lhe sobre a criança adormecida, enrolada no xaile esburacado. De sumida, a luz do candeeiro a petróleo deixava a noite afogar a taberna, quando eles entraram e foram cambaleando, esbarrar contra o balcão.
(…)
- Que maneira de entrar, raios os partam!
(…)
Ao soerguer o busto franzino, a rapariga sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.
Acorda. Maria, acorda,
Acorda, Mariazinha…
- Cantavam dois soldados que se haviam afastado do balcão.
(…)
- Hoje é noite de festa, não te zangues. A gente tem andado para aí a beber e a cantar, caramba!...
(…)
Agarrando-se ao rebordo do balcão, o soldado afastou o tronco. De súbito, com o olhar vago, como se todos os pensamentos o tivessem levado para muito longe, cantou vagarosamente:
         Quem sáão os três cavaleiros
         Que fazem sombra no mar?
(…)
Lá fora ouviam-se ranchos que passavam cantando. Eram as loas ao Deus Menino, na noite de Natal. O povo cantava pelas vielas, pelas ruas, pelos largos. Depois, calava-se, à espera da esmola, sob o céu frio, onde as estrelas tremiam, distantes. Os grupos de soldados conheciam-se mesmo sem os ver, bastava ouvi-los. Cantavam coisas diferentes. Esqueciam o Deus Menino e a sua voz falava de saudade da família. Nesse momento, uma toada entrava na taberna, chorava de queixa em qualquer rua, vinha crescendo, unida:
Oh, Beja, terrível Beja,
Terra da minha desgraça…
Em volta da mesa, os soldados emudeceram. A mão do Luís Palmito, que levava o copo à boca, parou, desceu, bateu no tampo negro.
Eram três horas da tarde,
Quando cá assentei praça…
Luís Palmito ergueu-se:
- Camaradas!...
Olhou para os dois soldados. Mas estes tinham as cabeças tombadas, só se lhes via o boné.
(…)
A custo, a rapariga ia fechando a porta. A canção vinha por vielas e esquinas dos lados das Portas de Moura. Vinha como um pranto, a loa ao Deus Menino:
O Menino está de neve,
A chorar e a tremer…
A porta da taberna fechou-se de todo, ouvia-se a tranca de ferro roçar pela madeira.
(…)”



In: “O fogo e as cinzas”, de Manuel da Fonseca. Capa de Armando Alves. Editorial Caminho (9ª. edição). 1981. “Noite de Natal”. Pág.s: 65/78.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

TRATADO DO CANTE - Modas:

TRATADO DO CANTE - Destaque-se: