TRATADO DO CANTE - Almanaque:
NAMOROU-SE O DEUS MENINO DE UMA CIGANA EM BELÉM
"(…)
Guedelha
veio ao postigo e ao encarar Adelina deu-lhe um impulso. Antes da
cigana arengar o pão, já ele lhe abria a porta:
-
Entra, Adelina… - insistiu puxando-a por um braço.
A
mulher entrou meia arrastada. O velho fechou a porta, encostou o
postigo e abraçou-a sem lhe dar tempo a reagir. (…)
Entretanto,
uma mão empurrou o postigo: era Mariana.
(…)
-
Já viste, desgraçado… se ela nos rouba alguma coisa?!…
Guedelha
ainda conseguiu responder, voltando as costas:
-
Achas que pode roubar alguma coisa?…
000
“Namorou-se
o Deus Menino de uma cigana em Belém
(…)
Foi
então que o cante irrompeu. Como era vésperas de Natal, cantou-se
ao Menino. A filha começou o salmo, em toada lenta e cristalina,
secundada pela neta, a que se juntou a voz grave do velho. Parecia um
céu aberto: “Namorou-se o Deus Menino/ De uma cigana, em Belém/
Olha a dita da cigana/ Tão lindo amor que tem...”
Quando
mais tarde o casal de velhos saiu, uma sensação especial de
conforto ia dançando na cabeça de Guedelha: - Afinal… também
o Deus Menino… tão santo… tão honrado… se perdia por ciganas…
Mariana,
logo que entrou em casa, foi buscar a tesoura e pendurou-a aberta
detrás da porta. Contra os maus agouros.
(...)”
in:
“O velho ainda canta!”, de João Mário Caldeira. Edições
Colibri. Outubro de 2006. Pág.s 104 a 108.
Comentários