TRATADO DO CANTE - Almanaque


SUÃO


(…)
Em dias de trovoada, ouvia-se distintamente o comboio, ainda longe. E o assobio da máquina, tão agudo e demorado, era uma mensagem de saudade a suavizar o coração da malta. Por via disso, as pessoas cantavam:

Lá vai o comboio, lá vai
Lá vai ele a assobiar…

As canções enchiam o universo rural. Até os pássaros cantavam, empoleirados nos troncos das árvores. (pág. 189. Terceira parte 1)

(…)
Chico Moiral alevanta-se de repente do cadeirão de palha, com os olhos alumiados de uma grande chama. Empunha o copo de vinho e diz uma décima à sua moda:

Já vi o mar uma vez
Quando fui prà cidade
Tinha as rugas de um maltês
Com voz d’autoridade!…

Bebem os amigos o vinho nas graças de uma cantiga. Rente ao chão, a cadela «Farrusca» lambe as botas do dono. Vem Maria Pompina com uma travessa de arroz doce e um sorriso de flor. E, daí a pouco, os homens e as mulheres cantam em coro os versos novos do «Pouca Lã»:

Já vi o mar uma vez
Quando fui prà cidade…

Gualdino despe o casaco. Crispim tira o chapéu. O Zeferino esfrega os olhos por causa da picada de um mosquito:

Tinha as rugas de um maltês
Com voz d’autoridade!…

A tarde quente vem pondo em cada peito liberto as marcas da solidão:

Solidão, ai dão, ai dão
Solidão do Alentejo…

E Chico Moiral sorri para a ganhoa Generosa. Vai amanhã comprar-lhe um xaile novo, um lenço novo, umas botas novas, com o dinheiro da venda de uns porcos que deixara a criar quando foi preso.

Ai que grande solidão
Que vai para além-do-Tejo!…

Agora no Largo, o homem senta-se num banco, cruza as pernas, puxa o lenço e limpa a casmarra dos cantos da boca. Enfrenta o vento suão e rasgam-se-lhe na alma os mistérios de uma paz sem fim. (…)
Os seus versos serviriam para alguma coisa? Porque a miséria se mantém, assolando as glebas, é bom que ele continue a descobrir palavras para serem cantadas ao povo, nos dias de feira, nas tardadas de ceifa, nas noites folgadas de estrelas. Cada vez que coça no cabelo de porco-espinho, as faces de barro, cortadas por distantes e puros pensamentos, os olhos luzentes, é mais que certo que o «Pouca Lã» vai cantar uma trova:

O vento suão traz a morte
A quem no que amansar,
Vento ladrão, ladroeiro,
Que nasce longe do mar…

Não eram anoitadas as tardes? (…)

Ó vento suão, vento suão
Vento da vida e da morte…

(…) Não têm água nas bilhas para encharcar o corpo de frescura. (pág.s 210/213. Terceira parte IV)
(…)

Então, o «Pouca Lã» grita para o espaço a ânsia de toda a gente, na sua estrofe angustiada:

Ó vento suão, vento suão
Vento ladrão, ladroeiro…

E os homens, mal se sentam, logo se levantam, acossados por uma necessidade de se salvarem de um perigo parente do pânico, que vem das solidões dos desertos, e os transforma em entes iludidos no meio do paradoxo da paisagem que morre aos poucos, devorada pela chama apocalíptica (pág. 248. Terceira parte X).
(...)”


in: SUÃO, de Antunes da Silva. Portugália Editora. Capa de Octávio Clérigo. 2ª. Edição. 1961.

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