04 001 TRATADO DO CANTE – À minha moda

"Modas" (Canções regionais alentejanas):



""Tal como procedemos para as cantigas (Quadras populares), deixamos registada na base de cada "moda" a localidade ou localidades onde foi recolhida e, portanto, se conhece e canta. Do facto de certa "moda" levar apenas um registo, não se deve inferir que só aí seja conhecida. Não, as mais delas são comuns a outras localidades e regiões do Baixo Alentejo onde igualmente são conhecidas, embora com ligeiras variantes na letra (versos) e no próprio estilo, isto é, na música que as constituem.

A verdadeira origem ou procedência de muitas delas nem sempre é fácil saber-se, posto que, se há "modas" restritas a certas localidades, só aí sendo conhecidas, outras há, porém, que, tendo maior área de circulação, se conhecem em todo o Alentejo, onde vão sofrendo as suas variações.

Criada a "moda", quero dizer, depois que surge, logo se espalha e divulga numa área de cada vez mais larga, dada a facilidade com que o homem se desloca de uma para outras localidades, de uma para outras regiões.

As "modas" registadas nesta colecção de mais de três centenas, creio-as alentejanas e do Baixo Alentejo. Há, todavia, nas "modas" certas e determinadas características que nos levam a afirmar peremptoriamente da sua verdadeira origem alentejana. Convém esclarecer, pois, aos menos entendidos, nesta matéria a que é que nós chamamos "modas" alentejanas e quais as suas características.

A razão desta denominação baseia-se no facto de passar a ser cantado por toda a gente, como uma coisa nova, isto é, como moda, qualquer cantar que apareça no folclore da região. É, portanto, a esse novo cantar que, andando tanto em voga, e passando a ser moda, chamamos "moda". Rapidamente o Povo dele se apropria (e tanto mais quando lhe agrada), espalhando-o e divulgando-o de boca em boca numa área de cada vez mais vasta.

Os cantadores chamam letras ou requebres (requebros) à inflexão da voz, trinado, dos versos, e estilo à música que constituem a "moda" propriamente dita.

Esta é sempre uma composição poética de duas quadras de sentido encadeado e rima cruzada. Há-as, porém, de uma só quadra ou de várias. Há estilos sem letras ou requebres, mas não há "modas" sem estilos.

Os versos são geralmente de sete sílabas, redondilhas maiores. Também os há de cinco e de mais de sete. Apresentam a rima seguinte: abcd-deca-deac ou ainda defg. Quero dizer, o 1º. verso da 2ª. quadra é sempre o 4º. da 1ª.; os outros variam..

Quase todas as "modas" têm aquilo a que se chama estribilho (exclamação, palavra ou palavras, verso ou versos), que se repetem no fim de certos versos das "modas". Estas cantam-se na maioria das vezes acompanhadas de cantigas (quadras populares soltas) que se alternam, isto é, "moda", quadra, "moda", quadra ( ou vice-versa).

Era quase sempre pelo Carnaval e São João que as "modas" novas apareciam. Hoje a rádio, levada à mais humilde aldeia ou lugarejo, tem de algum modo apagado certos usos tradicionais dos "cantes" alentejanos que insensivelmente, vão perdendo muito do seu natural e típico sabor, alterando-se e substituindo-se por inexpressivas e, porventura, duvidosas canções. Nem por isso creio, terão a rádio e os modernos "jazzes" força bastante para obliterar por completo muitos de nossos patriarcais costumes e usos que nossos maiores nos legaram por via de tradição. É que tão enraizados eles estão na alma do Povo, que não podem perder-se ou alterar-se senão por lenta evolução.

Em certas aldeias do próprio concelho de Beja: Salvada, Quintos, Baleizão e outras, por exemplo, o Povo preferia "balhar" e cantar uma noite inteira de viva voz e a plenos pulmões que servir-se da rádio ou de algum, moderno, "jazz", a que não acha graça nenhuma, naturalmente por estar fora de seus usos e de seu meio. Antes preferia uma gaita de beiços que outros quaisquer instrumentos músicos. E com que graça natural, tipicamente alentejana, os moços galanteadores das moças não "balhavam" de bordão ou cajado enfiado no braço, como sinal de respeito e defesa da sua própria pessoa, quando por meras futilidades, fanfarronices de gente moça, por questões de desconfiança com seu contrário (rival no namoro), surgia algum mal-entendido, ou porque ao pedir par aquele que "balhava" entusiasmado com a sua preferida, o seu derriço, ele se negava a dar-lho, ou porque queria "balhar" com ela à força, que não por jeito. Então é que eram elas... ou se batiam à cacetada mesmo no "balho" ou ficavam-se odiando.

As "modas" são variadas. Exprimem, quase sempre, pelo sentido que encerram, casos individuais ou gerais, questões amorosas.

Notas e comentários sugeridos e a explicação da parte técnica das "modas", isto é, da maneira como elas se compõem e se cantam, acompanham o trabalho de registo das letras. Nem por isso serão valores a desperdiçar. A letra (os versos) da "moda" refere-nos, como acima disse, casos amorosos, cenas particulares da vida, e retrata-nos, de certo modo, o panorama corográfico da Província e, o que é mais ainda, a fisionomia psicológica de suas gentes, isto é, os seus sentimentos, a sua maneira particular de sentir, de pensar e de agir - a sua alma.

Há "modas" que se cantam nos variados trabalhos do campo - sementeiras, apanho de azeitona, mondas, ceifas, debulhas, etc.... Há outras próprias dos "balhos" - "modas" de roda encadeada; outras se cantam em certas épocas festivas, etc. Há, ainda, as que só se cantam em coro, quero dizer, fora do "balho", no trabalho ou nos dias de folguedo e festança, dias santos de guarda e feriados nacionais.

Os encantadores e expressivos coros alentejanos têm "altos" e "baixos". No geral apenas um faz de "alto". Os outros cantam a uma voz.

Há um que começa a "moda" - é o "ponto" (solista). Também se denomina "ponto" ao verso ou versos cantados por esse que começa.

Não será fora de propósito dizer que, na verdade, são bem expressivos e encantadores os coros alentejanos.

O valor das "modas" alentejanas está em serem um canto misteriosamente afectivo, apaixonado, tendo algo de religioso e místico, como se desprende dos acordes e melodias.

A dolência e o vagaroso do canto vem-lhe do mundo ambiente - paisagem extensa, largos horizontes, influência climática, etc., em que vive o alentejano. Da liturgia recebeu a forma indefinida e simbólica, o que lhe dá carácter hierático. A tristeza e melancolia, de sentido vago que estes cantos traduzem e deixam transparecer, está na etnopsicologia do alentejano.

Na verdade, o canto alentejano é expressivamente belo e penetrando fundo na alma, cria- lhe suavidade e doçura.

Se em Cuba, na Vidigueira e em Ferreira do Alentejo são localidades onde bem se cantam as "modas" alentejanas, parece-nos, contudo, sem contestação possível, que é na margem esquerda do rio Guadiana, em Serpa, Aldeia Nova de São Bento e Amareleja onde melhor se canta no Baixo Alentejo.""

(...)""



in: "Subsídio para o Cancioneiro Popular do BAIXO ALENTEJO" (dois volumes). Comentário, recolha e notas do professor Manuel Joaquim Delgado. Edição de Álvaro Pinto (Revista de Portugal) – Lisboa.


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O Professor Manuel Joaquim Delgado

Autor de várias obras sobre o Baixo Alentejo.

A obra do Professor Manuel Joaquim Delgado é um imenso celeiro – uma almástica – inesgotável, que possibilita uma investigação interminável para muitas e imensas searas vocabulares.




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