09 008 TRATADO DO CANTE – Escrito:
“Cante
alentejano
(…)
A
declaração do Cante Alentejano como Património Cultural Imaterial
da Humanidade foi aprovada pelo Comité Intergovernamental da UNESCO,
em Paris, no passado dia 27 de Novembro. Logo após a feliz decisão,
as vozes dos cantadores do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo
de Serpa fizeram-se ouvir nos espaços da nobre Organização das
Nações Unidas para a Educação Ciência e Cultura na capital
francesa.
(…)
… Quem
já comeu numa qualquer aldeia do Alentejo e, a dada altura, os
homens se levantam e unem num coral, único na museografia nacional e
mundial, não pode deixar de ligar os sons e os sabores que ali
persistem, como que a fazerem frente à mundialização cultural que
nos invade. Sempre associei os aromas da gastronomia tradicional
alentejana aos seus cantares. E isso resulta de uma vivência
começada em criança, em finais dos anos 30, quando ia à taberna do
Monginho buscar meio litro de vinagre e por lá me esquecia a ouvir
os homens, à volta de uma grande mesa forrada de oleado, repleta de
petiscos perfumados
e de copos de vinho, uns cheios, uns meios, outros vazios. Foi numa
destas idas ao Monginho que o «Meu lírio roxo» nunca mais se
separou do grão cozido, a fumegar, temperado de azeite e vinagre,
com salsa e cebola picadas, que os homens comiam a acompanhar
sardinhas de barrica acabadas de fritar, enchendo o espaço do
convidativo cheiro da fritura.
(...)
A
última situação que me foi dado viver deste casamento de sabores e
cantares teve lugar em finais de 1998, na Pousada dos Lóios, em
Évora, durante um almoço oferecido aos participantes do «1º
Simpósio Internacional para a Paleobiologia dos Dinossáurios», que
tive o gosto de promover,
como director do Museu Nacional de História Natural. Uma vintena de
cientistas de nomeada, oriundos das cinco partes do mundo, saborearam
as belíssimas entradas de paio, presunto e queijos locais e
deliciaram-se com o magnífico ensopado de borrego, olhando e
sorrindo para nós como que a dizer «que coisa boa!». Começavam
eles a regalar-se com a encharcada, bem perfumada de canela, quando
um grupo coral de homens e mulheres, envergando os trajes regionais,
irrompeu lá no fundo do grande claustro, cantando e marchando,
grudados uns aos outros, numa mole humana que se aproximava, lenta e
cadenciada, a passo certo, num crescendo de arrepiar os cabelos e
trazer aos olhos uma lágrima rebelde: «Olha a noiva, se vai
linda...».
Como
alentejano que me orgulho de ser, cantei com eles e desses momentos
conservo na memória os olhos a brilhar da Doutora Angela Milner, do
Museu de História Natural de Londres, o ar extasiado do Prof. John
Horner, o paleontólogo americano que se celebrizou como assessor
científico de Spielberg no inesquecíve Jurassic Park, ou o
do Prof. Detlev Thies, da Universidade de Hannover. Não esqueço
ainda o ar feliz de merecido orgulho do Dr. Abílio Fernandes, um
dinossáurio entre os autarcas do pós-25 de Abril, um goês que
assimilou, a cem por cento, a maneira de ser e de estar dos
alentejanos.”
Lisboa,
02 de Dezembro de 2014
A.
M. Galopim de Carvalho
Professor
jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor
do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
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